SOLIDÃO

            O casal de gêmeos estava cada vez mais agitado. As brincadeiras de cunho divertido crianças, estavam passando a se tornar ataques agressivos um ao outro. Os pais já não sabiam o que fazer, e sendo bem sinceros, também diriam que estavam perdendo a paciência de estar ali. 

            A família estava ali por um motivo, e era apenas por esse motivo. Nunca foram muito afeitos ao velho, queriam apenas saber se o boato que ouviram era verdadeiro. Eles já haviam ouvido falar daquilo por duas primas de segundo grau de Roger, e também pelo seu tio alcoólatra, mas foi mesmo depois que seu irmão ligou contando a história, que eles consideraram mesmo a possibilidade do boato ser verdadeiro. 

            O avô finalmente terminou a história que contava. Era para ser uma história engraçada, mas ninguém nem ao menos sorriu no final. Ele entendeu o recado. Declinando a velha poltrona de couro manchado, terminou o resto da água do copo. Suas mãos estavam enfaixadas com ataduras velhas e sujas. 

            Deixando o copo sobre a mesinha, o velho se afirmou nas muletas e conseguiu se erguer com a facilidade de quem ainda conservava um pouco dos músculos de uma vida toda de pesado trabalho braçal.

            - Vamos lá atrás, pessoal. Eu tenho uma coisa muito legal para mostrar. 

            Todos o seguiram, arrastando os pés atrás dele. As crianças vinham sérias, olhando os porta retratos empoeirados com fotos antigas. Quem seriam aquelas pessoas? As crianças imaginavam que pelo menos um daqueles homens devia ser o avô. Elas caminhavam de mãos dadas segurando a mão da mãe, sentindo um pouco de medo. 

            Todos atravessaram o corredor principal até a área de serviços nos fundos, o ponto mais baixo da casa, sendo preciso descer alguns degraus para chegar nela. Havia uma lâmpada no meio do cômodo, que foi ligada quando o velho puxou uma corrente fina dependurada rente a parede.

            - Sabem, teve esse acidente aqui - disse o velho, indicando com a ponta do seu nariz comprido, o cotoco que restou da sua perna direita. - Um bêbado atrás do volante de um carro enquanto eu ia pela calçada. Foi sangue para todo lado, e uma dor tão forte que eu desmaiei no meio da rua. Não queria que nenhum de vocês estivesse lá para ver. 

            O casal estava ficando agitado. Enfim, tudo estava indicando que era mesmo verdade o boato que estava correndo pela família.

            Atrás de algo coberto por um uma lona amarela de caminhão, estava um grande freezer com sua tintura vermelha descascada. Com algum esforço, o velho abriu a tampa do freezer. Uma fumaça congelada surgiu, cobrindo por alguns instantes a visão de quem queria ver no seu interior. Eles esperaram com ansiedade. Por fim, haviam muitos pacotes lá dentro. O velho tinha um grande pedaço de costela de boi congelado, e outros cortes de carne, além de linguiças de porco e algumas caixas com salsichas. Coisas que sobraram do seu açougue.

            O velho começou remexer nos pacotes de carne, e a cada um que ele erguia, o filho e a nora arregalavam os olhos, medindo mentalmente para ver se poderia ser aquele. O velho até pensou em oferecer carne a eles, agora que tinha de sobra, mas achou melhor não, tendo certeza de que o casal não aceitaria. 

            Colocando quase todo o corpo para dentro do freezer, ele enfim conseguiu retirar o que procurava. Estava bem lá no fundo, debaixo de tudo aquilo, metido em parte em uma sacola plástica de supermercado. A família ficou boquiaberta ao ver o que era. A menina foi a primeira a quebrar o silêncio.

            - É uma perna!!! - disse a pequena.

            As crianças imediatamente quiseram tocar a perna, mas a mãe pediu que sossegassem. A verdade é que ela queria ser a primeira a pôr as mãos naquilo, para depois poder dizer as amigas. A perna estava dura como pedra, totalmente congelada, tinha tons de branco e roxo, e azul nas pontas dos dedos do pé. 

          - Meu deus do céu, pai. Como te deixaram sair com esse negócio do hospital? - o filho perguntou, pegando em mãos o pedaço da perna do pai, que com 38 centímetros não pesava mais do que cinco quilos.

          - Eles disseram que se eu não quisesse, iriam levar para a incineração. Eu disse que queria dar um sepultamento digno para ela, porque foram 64 anos juntos, grudados como unha e carne.

            Ou apenas como uma perna no seu corpo, pensou a mulher, enquanto deixava que os gêmeos tocassem o pé congelado do avô. Havia um grande joanete em destaque nele, que provavelmente lhe causou muita dor.

            - E eles te deixaram sair de lá assim? Fácil, fácil? 

            - Dentro de uma caixa de isopor, embrulhado em um pacote plástico escrito "descartes". E também tive que assinar alguns papeis do Serviço de Saúde, assumindo responsabilidade pela perna.

            O casal por algum motivou começou a rir daquilo. Depois de um tempo as crianças começaram a rir também. O velho, apoiado em nas muletas, sorriu satisfeito, vendo que todos pareciam felizes. Estava gostando de estar perto da sua família novamente. 

            A perna foi passada de mão em mão, indo em círculos, até que a família sentiu que ela estava começando a derreter e tiveram que a recolocar de volta no fundo do freezer, coberta por outros pedaços de carne.

            A história que o avô teve que amputar uma das pernas depois de ser atropelado na calçada por um carro chamou pouca a atenção dos filhos, mas todos se interessaram quando souberam que a perna amputada estava dentro do freezer de carnes. A história acabou se espalhando para todo resto dos familiares. Eles começaram a visitar o velho para ver aquele pedaço de perna congelado que ele guardava .

            - É impressionante, papai! - disse sua filha mais velha, Arlete. Como ela estava gorda, o velho pensou, assim que a viu passar pela porta, depois de tanto tempo. Sempre teve propensão a ganhar peso mesmo, assim como a maioria dos parentes por parte da sua mãe, ele lembrou.

            - Deve pesar a mesma coisa que um peru de natal - disse a irmã mais nova, assoprando fumaça de cigarro na perna.

            - De-e-eixa eu le-e-evar para c-c-casa, vovô? - perguntou o neto mais velho, que o velho conheceu nesse dia. Um menino pálido e tímido, que já tinha olheiras profundas, apesar da pouca idade.

           - Deixa de ser bobo - falou Laura, a mãe do rapaz. Para o pai ela tinha a beleza da mãe, sem ser tão gorda quanto. - Onde você pensa que iríamos guardá-la?

            Sentado na poltrona, o velho deu uma gargalhada, olhando para cada um dos rostos presentes na sala. Eram desconhecidos para ele, depois de tanto tempo distante, mas se esforçou para decorar cada um dos nomes.

            - Nos temos espaço no congelador da geladeira nova - respondeu Alice, mais uma das netas do velho. Quando entrou na casa, a adolescente por um tempo roubou a atenção com seu enorme alargador de ametista enfiado no lóbulo da orelha direita.  

            Mas mesmo adorando o falatório e o barulho que todos faziam, e por mais que o tratassem bem, o velho nunca deixou que ninguém levasse sua perna para casa, mesmo que implorassem. Sabia que se a levassem nunca mais voltariam para vê-lo novamente.

            - Quem quiser vê-la, tem que vir na minha casa! - era o que ele dizia quando alguém fazia o pedido. E volta e meia alguém sempre acabava fazendo.

            Foram muitas visitas durante aqueles dias. Parentes próximos e distantes . Antigos amigos e pessoas que ele nem conhecia. Todos queriam ver sua perna congelada. Até os jornais da cidade quiseram fazer uma matéria sobre o assunto quando ficaram sabendo do caso, mas todos os pedidos de entrevista foram negados pelo velho. Ele tinha muito medo de chamar a atenção das autoridades.

            O velho via os lábios das pessoa desconhecidas se moverem na sua frente, sem conseguir entender nada. O som de tantas vozes, associado a sua perda cada vez mais agressiva de audição, não eram favoráveis para conversas. Nessa circunstância, o velho tinha certeza de que mesmo que alguém enfiasse a cabeça dentro do seu ouvido para falar, ele não conseguiria ouvir nada. Com isso, sua resposta era sempre um sorriso amarelado.

             Os sobrinhos do velho haviam arrastado sua poltrona reclinável para o pátio. Ele estava sentado nela, como um pequeno lorde. Essa poltrona que esteve no mesmo lugar desde que foi comprada, há quase uma década. Ele, que sempre foi um homem que todos se referiam como "muito reservado", e que nesses almoços em família sentia que não conseguia mais reconhecer a própria casa, não se importou com as liberdades que os visitantes tomavam. Nesses dias ele tinha certeza de que se fosse procurar por algo básico, como seu rádio à pilhas ou uma caixa de fósforos, não encontraria. 

            Aconteceram muitas visitas diárias de pessoas que ouviram falar da perna congelada, e nos finais de semana, todos os familiares vinham visitá-lo. As crianças corriam pela casa, gritando, derrubando coisas e sujando os tapetes com terra do quintal, mas tudo bem para o velho, porque depois os tapetes ficavam limpos de novo, como nunca antes estiveram, desde que as filhas começaram a visitá-lo. Ele estava adorando tudo aquilo. Se pegava rindo feito bobo no meio de conversar aleatórias, que raramente se dirigiam a ele, enquanto sua perna era tirada e depois posta no freezer, várias vezes em um mesmo dia.

            Para o velho estava tudo estava indo muito bem, até as reações químicas que deterioraram a carne, mesmo ela estando congelada, acabarem provocando mudanças drásticas na perna. Foi inevitável que o membro acabasse perdendo suas características organolépticas, cada vez mais rápido. Em meses, a perna se tornou algo mais parecido com um gigantesco salame fora da validade do que com uma perna, e cada vez menos pessoas queriam vê-la. Até que no fim ninguém mais teve vontade de olhar para aquela que se tornou apenas um pedaço podre de carne humana congelada.

            - Você deveria enterrar logo a sua perna, papai - disse Laura, olhando para a perna dentro do freezer. Ela e o marido haviam combinado com a família que teria essa conversa com o pai naquela dia. Para ela a perna estava parecendo alguma espécie de animal extinto encontrado no gelo, depois de milhares de anos congelado em uma montanha.

            Aquilo foi como um tapa na cara do homem. Eles definitivamente não tinham mais interesse naquela sua atração excêntrica. Mas acima disso, ele sentia que estavam querendo enterrá-lo também. Pensava que já fazia tempo que estavam fazendo isso aos poucos. Começariam por uma pedaço razoável. 

            - O que o senhor acha de eu pegar aquela pá ali e, quem sabe, enterrar a sua perna lá no quintal, vovô? - perguntou o genro. Ele olhava para a esposa, como se o velho não tivesse a capacidade de entender o que seu olhar queria dizer.

            - Claro, faça isso! - disse o velho, prontamente. Teve medo que uma outra resposta pudesse indicar um traço de senilidade. Talvez pudessem começar a ponderar sobre a necessidade de interná-lo em alguma clínica, por mais sovinas que fossem.

            O velho estava novamente com sua solidão. A mesma, que durante a maior parte da sua vida foi para ele indispensável. Até seus últimos anos, atendendo diariamente seus cliente no açougue, enquanto alguma opera de Giuseppe Verdi tocava no rádio, ele não havia sentido realmente falta de companhia. Foi depois de muito tempo que o velho enfim se percebeu solitário e esquecido...

            - Jesus Cristo, eu vou morrer sozinho nessa casa... - balbuciou no escuro da sala de estar, com sua pequena televisão no mudo, sintonizada em algum programa que não sabia definir bem qual era o tema. 

            Ele já havia percebido que estava falando sozinho há algum tempo. Teve muito medo quando isso começou a acontecer. Ele acreditava que cérebro na sua idade estava cansado demais para resistir a loucura, por isso era preciso cuidado redobrado. Ele não queria voltar a esmurrar as paredes e passar noites em claro resmungando sozinho, mas achou que era isso que iria acontecer se não fizesse algo.

            Já era noite quando o velho se ergueu nas muletas e foi se balançando até a área de serviço. Com seus olhos tristes, ele olhava para os retratos que havia colocado nas paredes. Não conseguia reconhecer nenhum daqueles rostos. Havia encontrado todas aquelas fotos em uma mala velha e manchada, em cima do armário. Espalhou as fotos pela casa porque pensou que as pessoas que estavam nelas poderiam lhe fazer companhia.

            Ele estava determinado a ter todos de volta. Precisava das pessoas de verdade da família.

            Na área de serviço, uma das suas muletas caiu no chão e ele acabou se desequilibrando quando puxou a lona de caminhão. Acabou tombando para trás e batendo de costas no freezer, escorregou até o chão. Tomou fôlego e continuou a puxar a lona pesada, até sua velha serra fita de bancada aparecer. Ela estava reluzente vista do ângulo onde o velho estava sentado, apesar das partes onde se conservavam restos de osso e sangue.

            No chão da área de serviço, o velho tirou o relógio de pulso e apalpou seu antebraço esquerdo peludo. Talvez dessa vez eles gostem de um braço, pensou. 

            Já começava a se sentir mais animado. 


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