LAGO DE IMUNDICES

          Todos sentados na mesa, cada um com sua comida caseira. Uma mistura apetitosa das receitas, e ele pensando que a avó podia mesmo ter um presente para ele na bolsa no armário. 

         Comeu apenas um ou outro pedacinho de beterraba, mas ganhou o presente mesmo assim. Um barquinho com duas pazinhas como remos. Era como se a avó esse tempo todo não se importasse dele brincar com naquela água suja.

         O turno começava no final da madrugada. Antes de amanhecer já estavam no ônibus. Pelo caminho as colegas iam subindo. Gordas e magras, altas e baixas, de todas as cores e formatos, todas feias. Olhando pela janela, ele brincava com os cinzeiros nos bancos. Quando descia elas o carregavam por vielas escuras, enquanto as pessoas dormiam. 

            Ele achava que a avó trabalhava em um castelo, por isso gostava acompanhá-la quando podia. Na verdade ela era faxineira em um motel que a arquitetura tentava imitar algo medieval. Tinha pequenas muralhas e torres de defesa feitas de tijolos, e um foço raso cheio de lixo. 

            No motel ela retirava as roupas de cama. Era uma mulher pequena e sólida como uma pilha de pneus, com cabelo curto tingido de preto e escovado para cima, e óculos de armação casco de tartaruga. Puxava tudo com muito mais força nos braços do que uma mulher daquele tamanho deveria ter, e colocava em um cesto com rodas. 

            "Não encoste em nada. Você pode pegar uma doença!", ela dizia, se balançando em tênis esgarçados. Ainda não tinha idade para entender o que via, mas dava para perceber que o negócio era sério, pelas caretas que a avó fazia quando limpava certas coisas, sempre com luvas de borracha.

            Através das paredes ouviam batidas, sons estranhos, e às vezes gritos. A avó dizia que eram os fantasmas do castelo, por isso não devia mexer nas maçanetas e bater nas portas. 

            Uma máquina industrial de meia tonelada lavava as roupas. Tinha uma capacidade para 70 quilos de tecido, entrada para vapor e porta horizontal articulada. Um monstro, fazendo barulho o dia inteiro, mexendo como um caldeirão gigante, ruminando todo pano que sua avó enfiava para dentro na ponta dos pés.

            A água da máquina corria por um cano e era despejada nos fundos do motel. A boca do cano lamentava com uma espécie de gemido antes de começar a jorrar e abastecer uma poça imensa, mantida o dia todo pelo fluxo das lavagens. Um pequeno lago de imundices. 

            Ele subia nas falsas torres de vigilância e caminhava ao longo dos muros, como se estivesse em um castelo de verdade. Mas quando a avó não estava olhando, ia brincar ao redor da poça. Imaginava arraias, como que voando, balançando as caudas, piranhas e monstros debaixo da superfície com espuma - que também podia ser ácido ou lava quente.

            Mais litros de água despejados. A cor vermelha lembrou da beterraba.

            O vermelho destoou cada vez mais do azul e branco do barquinho. Quando encontraram sua avó, ela já havia completado o ciclo de lavagem.

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