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LAGO DE IMUNDICES

              Todos sentados na mesa, cada um com sua comida caseira. Uma mistura apetitosa  das receitas, e ele pensando que a avó podia mesmo ter um presente para ele na bolsa no armário.           Comeu apenas um ou outro pedacinho de beterraba, mas ganhou o presente mesmo assim. Um barquinho com duas pazinhas como remos. Era como se a avó esse tempo todo não se importasse dele brincar com naquela água suja.            O  turno começava no final da madrugada. Antes de amanhecer já estavam no ônibus. Pelo caminho as colegas iam subindo. Gordas e magras, altas e baixas, de todas as cores e formatos, todas feias. Olhando pela janela, ele brincava com os cinzeiros nos bancos. Quando descia elas o carregavam por vielas escuras, enquanto as pessoas dormiam.              Ele achava que a avó trabalhava em um castelo, por isso gostava acompanhá-la quando podia. Na verdade ela era faxineira em um motel que a arquitetura tentava imitar algo medieval. Tinha pequenas muralhas e torres de defesa

TOXOPLASMOSE É A DOENÇA QUE SE PEGA DO GATO

               Dalva espiou para dentro do quarto escuro. A cama parecia vazia, mas havia um ser humano deitado nela. Ela se aproximou e olhou a pessoa definhando, sem conseguir identificar se era homem ou mulher.                 Toxoplasmose, disse uma voz. a menina deu um pulo de susto. Havia uma pessoa no canto escuro. Uma adolescente com olhos puxados e cabelos muito pretos e escorridos. Ao contrário de quem estava na cama, seu corpo era robusto.                 Toxoplasmose é a doença que se pega do gato, disse a mãe de Dalva, mais tarde. Segundo a mãe, a menina não deveria se preocupar com essa doença, porque a principal causa de mortes na família era mesmo o suicídio.

AS CABEÇAS DAS NOSSAS MÃES

              O dia abafado  fazia pensar sobre CO² e calotas polares derretendo. Não havia nenhum vento, e as galinhas combalidas ciscavam ao redor da cabana com suas asas e bicos abertos. Um homem pequeno de cabeça ovalada varria com sua vassoura de palha ao redor do seu santuário particular, enquanto mascava uma presa de porco como se fosse chiclete.   Sem camisa e bem disposto, com um copo grande de chá preto gelado sobre a cadeira, ele parava de vez em quando para olhar ao redor. O suor escorria pelo seu rosto contrito. Queria deixar tudo limpo e arrumado.                 Satisfeito, escorou sua vassoura em uma árvore e pegou o copo de chá. Deu alguns goles e depois se sentou com uma postura perfeita na cadeira.                Parece tudo de acordo, pensou. Só falta uma coisa.

RELATÓRIO ATRASADO DE SEXTA-FEIRA

               Ela era uma planta feia. Um tipo de arbusto com caules grossos e amarronzados, que tinha meia dúzia de folhas gordas verde-amareladas. Não dava para ter certeza se estava viva ou morta, mas Félix e a esposa continuavam colocando água nela.                 Como era um presente da irmã da mulher, que trouxe a planta do Himalaia quando foi procurar por equilíbrio e clareza espiritual, pouco antes de se matar, de jeito nenhum poderiam colocá-la fora tão cedo. A planta foi sendo transferida pela casa. De cima do aparador da entrada para a um canto da sala, depois para a estante de livros do quarto, e por último parou no escritório.               Naquela noite, Félix tentava fazer  seu primeiro relatório de gestão da sexta-feira para fazer. A entrega já estava bem atrasada. Não havia digitado mais do que dez palavras durante todo aquele final de semana.                 "Quem acreditou que sou apto para essa vaga?", se lamuriava, sem conseguir tirar os olhos da planta

NÃO QUERO SER GRANDE

                 Muito bêbada e sentindo sua calcinha molhada do sêmen de dois rapazes, cujo os nomes não fazia ideia, Isabel desceu do carro das suas jovens amigas, ao som de música alta e risadas, e saltou pelo portão dos fundos na madrugada de sábado. Caiu feio de joelhos do outro lado, se levantou e caminhou descalça pelo gramado, sem saber do paradeiro dos seus sapatos, e ainda sem dar falta do celular.                 "Essa foi a verdadeira festa de aniversário que eu precisava", ela pensou, sentando na área coberta dos fundos da casa dos pais.                - Trinta anos que nada! Ainda sou uma jovem princesa encantada...                O gato desceu da mureta e esfregou seu corpo felpudo de pelos pretos e brancos nela, mas Isabel mal percebeu. Estava perdida observando uma linha branca deixada pelo que parecia um avião a jato cruzando o céu naquele amanhecer. Tentou enxergar o piloto a bordo sem seus óculos. Detestava ter que usá-los e sempre os tirava para ir nas fe

O QUADRO DOS LEVEY

          - Que dia lindo! Ótimo para caminhar, passear, se divertir!               A animação não pareceu nada verdadeira à mme. Levey. Era  o fim de uma tarde ensolarada. Do outro lado da janela, pessoas caminhavam pela rua e conversavam alto. Muito suor, chinelos de dedos, bermudas, garrafas d'água e crianças.                "72 anos e ainda tenho que aguentar essas coisas".                 Sentia-se cada vez mais afetada pelo calor dos verões. Sempre foi uma mulher de dias frios, escuros e chuvosos. Tinha certeza de que sofreria quando fosse para o inferno.               Seu  quadro foi trazido de volta por um menino. A criança tinha dificuldade de carregá-lo, e foi o pai que colocou o quadro no balcão, fazendo com que fizesse um ruído, como de desaprovação. 

VIOLAÇÃO

              Apoiado em sua pá, o homem de rosto esburacado olhava o cadáver da adolescente dentro caixão recém aberto.                - É você mesma que eu procurava. A vampira rameira que roubou meu coração.                Encostou a tampa do caixão em uma das paredes da cova. Logo roubou a corrente de prata presa ao dedão do pé da morta. Viu que sobre o pescoço dela havia a lâmina de uma adaga, que haviam colocado ali para o caso da defunta levantar para sugar sangue dos umbigos dos recém nascidos. Também a roubou.                - Gente tosca! - disse Andrzej, tomando um gole da sua bebida fantástica, guardada no interior do casado. A bebida desceu quente como querosene e lhe deu mais vida. - Acreditam nessas lendas e se dizem cristãos de verdade.