NO ARQUIVO

        Tinha uma mesinha que ficava no fundo desse arquivo, entre duas prateleiras enormes, cheias de caixas mofadas. Era um lugar apertado, e tinha mofo por todo lado, e caixas em todo lugar. Haviam documentos misturados nessas caixas. Tudo era muito desorganizado, e só Ele conseguia ficar tanto tempo lá  dentro.

        Os clientes eram atendidos pela janelinha da porta de ferro. Uma porta muito pesada, que estava sempre fechada. Quando alguém chamava pela abertura, Ele demorava uns dez minutos para responder,  desviando  das  caixas  que  estavam   no  chão  e andando  pelos  corredores, que  estavam  cada  vez mais  estreitos.

        Daquela vez, quando bateram na porta, Ele estava ali perto, murmurado coisas aleatórias. Quando abriu a janelinha, viu que era um bando de moscas inquisidoras. Uma das delas pediu uma das fichas funcionais, entregando um pedacinho de papel com uma série de números anotados. Era a ficha que o Diabo levou sem a sua autorização. A mosca, provavelmente a líder do grupo, pareceu perplexa com a notícia. As informações naquela ficha, segundo ela, eram no momento de grande importância.

        Algo que Ele lembrava sobre a ficha, e que pode informar às moscas, era que a causa da morte havia sido overdose de speedball, e que a foto não parecia  de um ser humano, mas de uma escultura feita de argila. Algo que acontece se você fica duas semanas morto no chão do apartamento.

        Havia um gato com ele, disse a mosca. 

        Com o Diabo, sim. 

        Não com o Diabo, com a pessoa da ficha. 

        E a mosca descreveu o gato como um animal gordo, de pelo branco e castrado. Se era castrado Ele não sabia, mas sabia que a outra característica batia, e Ele disse que talvez fosse ele que estivesse solto no arquivo. 

        Para as moscas, capturar o gato era tão importante quanto obter a ficha, então elas ajudaram na busca. Foram dias atrás do animal, e mesmo sendo mais rápidas, as moscas só haviam encontrado as fezes do gato, e ainda muitas acabaram mortas nas teias de aranha, que estavam em todo canto.

        Um dia Ele finalmente encontrou o gato, enquanto andava por mais um dos corredores que pensava nunca ter visto. O animal estava em um espaço vazio, entre duas caixas de papelão. 

        Enquanto caminhava em busca da saída, com o gato no colo, Ele até pensou que seria fácil deixar as aranhas exterminarem aquelas moscas e ficar com o gato para si, como companhia. Mas lembrou que o gato veio com o Diabo, e que provavelmente ele iria querer o bicho de volta..

        Uma figura estranha começou a se movimentar no topo de uma das estantes, a muitos metros do chão. Era uma sombra que descia, se apoiando nas caixas. Quando se aproximou, Ele viu que era o Diabo, que nunca havia saído do Arquivo, tinha apenas se escondido. Agora lá estava ele, com a ficha presa entre os dentes.

        As moscas precisavam da ficha por causa do cadáver, explicou o Diabo, que também tinha essa intenção, porque o homem foi um músico muito famoso e o corpo valia alguma coisa. Quanto ao gato, era um bom animal de estimação, e havia feito companhia para o corpo. Fazia sentido para alguém que os dois fossem um conjunto.

        O porque do Diabo ter se escondido no arquivo por todos aqueles dias, só faria sentindo mais tarde. Mas não espantou Ele em nada, porque muitas coisas habitavam aquele arquivo.

        O plano do Diabo era deixar que as moscas se perdessem no arquivo. Ele disse ao Diabo que provavelmente isso já havia acontecido. Pois então, era só deixar que as aranhas dessem conta delas, como ele havia pensado. Como o Diabo sabia o que ele havia pensando, também não o espantou.

        Enquanto Ele processava a disputa do Diabo e das moscas por um corpo e um gato, uma voz veio do alto, gritando MENTIROSO. Era a maior mosca de todas, que estava voando em torno da lâmpada amarelada e ouviu tudo. A mosca se lançou em alta velocidade para cima do Diabo, o acertando de cheio, fazendo com que voasse para cima de um amontoado de caixas. A criatura o acertava de todos os lados, não dando chances para que se levantasse do chão. 

        Enquanto a mosca continuava agredindo o Diabo, Ele correu pelos corredores com o gato no chão e a ficha debaixo do baixo. Correu muito, até parar por acidente naquela mesma mesinha. Pondo o gato na mesa, Ele se sentou e começou a ler a ficha toda, ali na mesa, em total silêncio. 

        O gato já havia dormido várias vezes, e agora acordava novamente, vendo que Ele o encarava de boca aberta, depois de ter terminado a leitura.

        Você está aí? Ele perguntou para o gato. O gato sentou, olhou Ele nos olhos, e disse que sim.


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