NÃO QUERO SER GRANDE

             Muito bêbada e sentindo sua calcinha molhada do sêmen de dois rapazes, cujo os nomes não fazia ideia, Isabel desceu do carro das suas jovens amigas, ao som de música alta e risadas, e saltou pelo portão dos fundos na madrugada de sábado. Caiu feio de joelhos do outro lado, se levantou e caminhou descalça pelo gramado, sem saber do paradeiro dos seus sapatos, e ainda sem dar falta do celular. 

            "Essa foi a verdadeira festa de aniversário que eu precisava", ela pensou, sentando na área coberta dos fundos da casa dos pais.

            - Trinta anos que nada! Ainda sou uma jovem princesa encantada...

            O gato desceu da mureta e esfregou seu corpo felpudo de pelos pretos e brancos nela, mas Isabel mal percebeu. Estava perdida observando uma linha branca deixada pelo que parecia um avião a jato cruzando o céu naquele amanhecer. Tentou enxergar o piloto a bordo sem seus óculos. Detestava ter que usá-los e sempre os tirava para ir nas festas. Queria não ter medo que as lentes de contato escorregassem para dentro da sua cabeça, para assim poder usá-las ao invés de andar por aí sem poder identificar os rostos das pessoas bem a sua frente.

            - Oi, Vaca - disse ela, ao perceber o gato. - Como foi a noite? Conseguiu se divertir sem os testículos?

            O gato respondeu com um miado rouco, que para ela pareceu dizer que sim. Não havia essa bobagem de problemas com a idade para os bichos, pensou Isabel. Mas em contrapartida, também não havia uma infância muito longa.

            Afagando seu gato, Isabel lembrou de quando era criança e costumava brincar de princesa naquele pátio, com sua antiga melhor amiga. Praticavam os beijos das novelas que as mães assistiam e fumavam os restos nas guimbas de cigarro que o pai de Isabel jogava no quintal. Era uma infância divertido.

            "Nicole, onde está você, sua vagabunda sem coração?", indagou Isabel, em pensamento. "Ou essa seria eu?".

             Não sabia dizer no momento, estava muito chapada para lembrar os detalhes da separação das duas. Algo dizia que tinha a ver com uma mochila da Hello Kitty emprestada. Se não houvesse perdido o celular, teria ligado para sua amiga e perguntado. Gostaria de saber onde Nicole estava e o que andava fazendo. Se estava estabelecida em um emprego, se tinha uma casa e uma família, se havia se matado.

           Houve o som abafado de algo caindo na grama alta quando o arco de fumaça no céu terminou bem no meio do quintal. Isabel não pôde acreditar que aquilo que havia acontecido. Uma coisa havia despencado do céu, bem na sua frente!

            Ela caminhou curvada até o local da queda, onde algo misterioso esfumaçava como um pedaço de carvão aceso. Era um tipo de pedra cor de rosa, pequena e bastante disforme, que lembrava plástico derretido. Isabel cutucou a pedra com a ponta da sua unha cumprida. Não pareceu estar quente, apesar da fumaça. Ela então a trouxe para perto dos olhos, para ver com atenção sua forma exóticas. Parecia ser feito de vidro, talvez fosse um cristal.

            "Um meteorito! Ou meteoro?". Ela nunca soube a diferença dos nomes das pedras que estão caindo do espaço e das que já caíram. Conseguia sentir uma energia estranha. Chegou a pensar que fosse um material perigoso, mas não passou pela sua cabeça soltá-lo. Já havia bebido demais e feito muitas coisas na vida para agora se preocupar com um contágio radioativo.

            - Uma pedra mágica... - sussurrou, se sentindo ridícula com as palavras, mas sem se importar muito.

            Na última vez em que se olhou no espelho, na noite passada, antes de sair para a festa, Isabel viu algo que não gostou, mais do que outras que sempre percebia no espelho. Era uma linha fina que descia na transversal pelo seu olho em direção a orelha. Torceu para que fosse imperceptível para as outras pessoas. Não sabe porque, pensou no curso de veterinária que gostaria de ter feito, e no curso de meteorologia que decidiu cursar em vez dele, e que nunca havia entregue um trabalho sequer da faculdade. 

            Já fazia tempo que o negócio de Isabel era não fazer nada. Seriam trinta anos de contraproducência, às 10 horas e 25 minutos daquela manhã, para ser exato.

            O que Isabel mais queria de verdade, era nunca ter deixado de ser criança. Nunca ter deixado sua melhor amiga da infância e, principalmente, nunca na vida fazer 30 anos. Sentia que a coisa que fazia as pessoas saberem ser adultas e ter responsabilidades, nela não estava funcionando. Não conseguia se ver longe dos pais ou sendo cobrada por coisas que só cabiam a ela resolver.

            - Não quero ser grande, não quero ser grande, não quero ser grande, não quero ser grande... - repetiu Isabel, segurando tão forte a pedra que suas unhas postiças se quebraram na palma da mão.

            - Bibbidi-bobbidi-boo!

            As palavras mágicas escaparam de sua boca, como se tivessem sido ditas por outra pessoa. Sentiu todos os pelos no corpo se arrepiarem, até seus cabelos e seus cílios postiços. Ouviu seus ossos começarem a estalar, como cacas de nozes se quebrando. Isabel percebeu que havia começado a encolher de verdade.

            Primeiro as mãos, depois os braços, a perna direita e depois as orelhas... Por último foram seu nariz e as bochechas. Qualquer um que a visse daquele jeito, em meio ao encolhimento, sairia correndo. Mas Isabel sorria de orelha a orelha vendo aquilo, enquanto seus pulmões encolhiam e o coração batia cada vez com mais força. Sentia que naquela momento tinha 12 anos novamente, embora seu corpo ainda estivesse se ajeitando. Começou a ficar triste quando percebeu seus peitos encolhendo no sutiã, e seus cabelos afinando e desaparecendo. E sua decepção com a magia não parou por aí, logo seus pés ficaram tão pequenos que não pode mais parar em pé. Percebeu que estava rejuvelhecendo demais, e a coisa parecia que não ia parar. Logo o peso de sua cabeça era tão grande que definitivamente ficou impossível se erguer, enrolada dentro do seu vestido de festa.

            - NÃO, NÃO, NÃO, NÃ, NÃ, NÃ, NÉ, NHÉÉÉ, NHÉÉÉ, NHÉÉÉÉ....

            Isabel largou a pedra, que agora era enorme na sua mãozinha de bebê, fazendo o processo de rejuvelhecimento cessar imediatamente. "Então era só eu ter largado isso?", pensou ela, caindo mais ainda no choro. Começou a engatinhar nua em direção a casa, para a única pessoa que sentia que poderia salvá-la. Queria gritar alto para, mas só conseguia balbuciar baixinho ao léo.

            - Ma, mama, ma, mama, mama, mama...

            Começou a rir da condição em que estava. Gargalhava feito um bebê brincando de sumir. "Espera só para ver a cara do pessoal quando me virem", pensou Isabel. "Vão ter que trocar minhas fraldas agora, tudo outra vez".

            Sua risada começou a soar cada vez mais alto, tão forte e incontrolável que se sentiu sufocando. Não conseguia parar, por mais que sentisse que aquilo a estivava matando.

            "Quero ver a cara do meu pai quando eu vomitar na boca dele de novo. Vômito branco e de bebê, do leite azedo dos peitos caídos da mamãe".

            O vitrô da porta da porta dos fundos da casa se abriu.

            - Isabel, você está parada aí fora? - perguntou sua mãe segurando o telefone, lançando fumaça de cigarro e bafo azedo de café no ar da manhã. - Eu sei que você está aí, não se faça de surda, garota! Sua amiga Nicole está no telefone para te dar feliz aniversário. 

            Os olhos meio abertos de Isabel não podiam ver nada, e seus ouvidos muito menos ouvir alguma coisa. Seu corpo tremelicava no adorável porcelanato acetinado que haviam posto na área externa na semana passada. 

          - Desculpe, Nicole, pensei que ela tivesse chegado, mas pelo jeito eu me enganei. Mas como estão as coisas, princesa? Que bom saber disso. Independência é sempre bom, eu vivo dizendo para Isabel.

            A mãe esperou por um instante, morrendo de vontade de voltar para o Winston que deixou queimando no cinzeiro. Fechou o vitrô com força. Mais uma vez sua velha reflexão veio à mente. "Onde foi que errei com essa menina...?". Enquanto isso, o gato lambia o vômito da boca de Isabel.

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