O QUADRO DOS LEVEY

          - Que dia lindo! Ótimo para caminhar, passear, se divertir!

            A animação não pareceu nada verdadeira à mme. Levey. Era o fim de uma tarde ensolarada. Do outro lado da janela, pessoas caminhavam pela rua e conversavam alto. Muito suor, chinelos de dedos, bermudas, garrafas d'água e crianças. 

            "72 anos e ainda tenho que aguentar essas coisas". 

            Sentia-se cada vez mais afetada pelo calor dos verões. Sempre foi uma mulher de dias frios, escuros e chuvosos. Tinha certeza de que sofreria quando fosse para o inferno.

            Seu quadro foi trazido de volta por um menino. A criança tinha dificuldade de carregá-lo, e foi o pai que colocou o quadro no balcão, fazendo com que fizesse um ruído, como de desaprovação. 

            - Quanto? - ela perguntou, mesmo já sabendo o valor. Tirou o dinheiro bem contado de uma niqueleira descascada de couro sintético. 

            Sem perceber o homem segurou o pingente de crucifixo em prata.

            - Posso perguntar se esse quadro é da senhora? 

            - Sim, claro que é! - respondeu ao homem.

            Ele coçou o cavanhaque, parecendo curioso e desapontado. Pegou o dinheiro sem contar e colocou direto no bolso traseiro da calça. 

            - Esse é o quadro mais estranho que eu já vi na vida, minha senhora, preciso dizer. Enquanto eu o restaurava, meu estômago embrulhou várias vezes. Não consegui parar de pensar quem penduraria uma coisa dessas na parede. É tão assustador que minha mulher me fez prometer que não restauraria ele em casa. 

            A mulher ergueu o olhar, e  pela primeira vez ele viu bem seus pequenos olhos, se esforçando para erguer as grandes bolsas caídas abaixo deles. Ainda havia uma energia remanescente ali dentro. 

            - Não posso dizer que é um belo quadro, mas infelizmente é parte inerente da família. Meu pai pintou esse quadro antes de morrer - revelou mme. Levey. - Foi sua obra final, depois de toda uma vida dedicada ao oculto.

            - "Oculto"? 

            O menino estava ao seu lado, como um cachorrinho, com as duas mãos sobre o balcão e os olhos arregalados para a velha.

            - Mais do que arte. A invocação de coisas do outro mundo. 

            Devia ser apenas sua imaginação, pensou o restaurador. A aparente vibrações no balcão. 

            Colocando seus óculos escuros, mme. Levey saiu com seu quadro embrulhado debaixo do braço, e se pôs a caminhar com muito esforço a passos sofridos, tendo o sol batendo em cheio em sua pele pálida. Ao seu redor, pessoas comendo sorvete, passeando com animais, crianças gargalhando. Era a tensão do mundo social atrás de contato, animados pelo calor. Se sentia em um estado opressor, presa numa pintura de Renoir, com o suor escorrendo pelas coxas varicosas no vestido. 

            O taxista despertou em um pulo assustado. Quando viu a minúscula mulher sentada ao seu lado, ficou aliviado. 

            - Para onde, minha senhora?

            - Para casa. E de uma vez - respondeu mme. Levey, dando o endereço.

            A toda velocidade o taxista seguiu. Pelo ar-condicionado talvez estar quebrado, o trajeto todo foi feito de janelas apertas. Cada vez mais irritada com a situação de ter de sair de casa, a coisa piorou pelo rádio estar sintonizado em um programa de comédia.

            - Será que você não pode desligar? 

            - Incomoda a senhora? 

            Seu dia não tinha mais como piorar. Tivera que buscar o quadro pessoalmente, no aparentemente único restaurado de quadros capaz de restaurar o quadro do pai. Isso depois de uma longa pesquisa e de testar vários outros restauradores, a maioria capaz de ir buscar o quadro em sua casa, vejam só. 

            Infelizmente não eram homens de sorte. Nenhum deles.

            - Que se foda - disse mme. Levey. 

            O taxista gostou da resposta e abriu um sorriso. Cuspiu seu chiclete velho pela janela e atingiu uma menina na calçada. Levey gostou disso.

            - Pelo menos posso fumar? 

            - Nem pensar! - disse o taxista, batendo com os dedos no adesivo de "proibido fumar" acima do rádio.

            "Porco", pensou ela, devolvendo o cigarro ao maço dentro da bolsa.

            - A senhora mora quase fora da cidade. Não tem mais nada naquela parte da cidade. - disse o taxista.

            - Ficou sabendo dos desaparecimentos? - ela perguntou, como se lesse a sua mente. - Três taxistas. Acham que é um assassino em série. Encontram os carros no fundo do rio 

            Madame Levey virou-se e encarou o horizonte. Aquele estranho colorido no céu, presente em pinturas felizes. 

            - É por isso que agora eu ando com isso daqui! - disse o taxista. Ela percebeu que o homem balançava algo. Era uma arma velha. Parecia querer assustar a mulher.

            - E você sabe onde fica o gatilho desse troço?

            O homem riu e guardou a arma.

            - Pode crer que sei.

            Quando finalmente chegaram. Era uma pequena casinha totalmente coberta de heras. Duvidava que desse para abrir as janelas. Tudo iluminado por duas lâmpadas amareladas na entrada, ao lado de carrancas de madeira.

            - Então é isso - disse ele, batendo com o dedo no taxímetro. -  Esse parece um bom lugar. Bastante espaço sobrando e árvores. O que tem de ruim para ainda não terem feito um condomínio?

            - Uma Levey - ela respondeu.

            O taxista não entendeu.

            A velha procurou o dinheiro na bolsa, sabendo que havia dado tudo o que tinha para o restaurador. 

            - Não vai me dizer que não tem dinheiro? 

            - Eu tenho dentro de casa.   

            Mme. Levey se erguia com o quadro quando sentiu um puxão que a fez cair de volta no banco.

            - Desculpe, senhora, mas ele vai ter que ficar  - disse o homem. Seu olhar a fez lembrar de quando ele riu da piada do porque o índice de mulheres violentadas ser tão alto. 

            - Justo. Se eu entrasse, você não conseguiria passar por esses portões com essa lata-velha, 

            - Meu pai era um pintor obsceno. Criava imagens que poderiam chocar até um homem como você. Viu aquelas tetas com asas de morcego? Foram ideia dele. Bocetas dentadas parindo bebês demônios raivosos cheios de fome, as chamas do inferno consumindo as almas dos pecadores suicidas. Heresia radical, mórbida nudez explicita, esse era o seu negócio. Não queira essas imagens na sua cabeça.

            - Velha louca - disse o taxista. Deixou que mme. Levey se distanciasse, se controlando ao máximo, até vê-la desaparecer atrás da porta. Depois disso ele se pôs a tentar abrir um pouco o embrulho, com o máximo de cuidado. Queria apenas dar uma espiadinha na putaria, para ver se era tudo isso que ela havia dito. 

            Assim que mme. Levey entrou na casa, uma dúzia de gatos de pelugens variadas vieram recebê-la na porta. Ela xingou todos eles no caminho até o armarinho. Por um momento parou e pensou no que o homem havia dito sobre o pagamento, mas pensou que havia bastante dinheiro na lata de pães de mel sobre o armário da cozinha, não tinha porque ser tão sovina, concluiu. 

            "Como você é boba, Ruti", pensou ela, acendendo o cigarro e enchendo com gosto seus pulmões com sua fumaça. Um grunhido estremecendo veio do lado de fora. O som era da agonia e do desespero que só poderiam ser descritos em uma pintura. Dentro da casa, nem ela ou os gatos deram a mínima atenção.

            - Calminha, um por vez, seus demoniozinhos! - disse mme. Levey, despejando mais um punhado de ração no pote de cada gato. Os assistiu comer por um momento, lembrando do restaurador. Teve certeza de que seu segredo era aquele crucifixo pendurado no pescoço. Ela puxou um pouco da cortina para espiar como iam as coisas do lado de fora.

            Seu pai havia feito uma obra de arte como poucas. Uma pintura tão carregada de loucura e magia que conseguia mesmo engolir seu observador. E esse era seu problema, por mais que as obras ainda pudessem valer alguma coisa em círculos muito seletos, no fim ninguém tinha coragem de levá-la para casa.

            Com um cigarro aceso nos lábios cheios de batom, Levey caminhou até o táxi, sem nenhuma presa, seguida por Harmas e Marax, dois dos seus gatos favoritos. Marax foi o primeiro a chegar no veículo. Ele cheirou a poça de sangue no tapete do carona, que escorria da moldura quadro sobre o banco. O gato fez uma careta. Não era nada carnívoro, gostava apenas de ração.

            Tirando o sangue, o retrovisor quebrado e o que parecia um pedaço de intestino grosso ao redor do câmbio de marchas, o carro estava muito "bom para negócio", pensou mme. Levey, com um sorriso, depositando o dinheiro da corrida no porta-moedas.

            - O que vocês estão esperando, seus vadios!? - disse mme. Levey, dando as costas para o veículo, abraçada no quadro. Logo os gatos se ouriçaram, saindo da forma de felinos para se transformarem em coisas que conseguissem fazer o serviço. 


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