RELATÓRIO ATRASADO DE SEXTA-FEIRA

            Ela era uma planta feia. Um tipo de arbusto com caules grossos e amarronzados, que tinha meia dúzia de folhas gordas verde-amareladas. Não dava para ter certeza se estava viva ou morta, mas Félix e a esposa continuavam colocando água nela. 

            Como era um presente da irmã da mulher, que trouxe a planta do Himalaia quando foi procurar por equilíbrio e clareza espiritual, pouco antes de se matar, de jeito nenhum poderiam colocá-la fora tão cedo. A planta foi sendo transferida pela casa. De cima do aparador da entrada para a um canto da sala, depois para a estante de livros do quarto, e por último parou no escritório.

            Naquela noite, Félix tentava fazer seu primeiro relatório de gestão da sexta-feira para fazer. A entrega já estava bem atrasada. Não havia digitado mais do que dez palavras durante todo aquele final de semana. 

            "Quem acreditou que sou apto para essa vaga?", se lamuriava, sem conseguir tirar os olhos da planta. 

            Tentou se concentrar no trabalho, mas acabou entrando no Facebook e vendo uma foto da esposa com a irmã de fio-dental, em cima de uma rocha à beira mar. Lembrou do começo do namoro, quando todos dormiam no mesmo quarto apertado e quente, e ele fazia sexo com a esposa na cama ao lado da irmã. Eram poucos centímetros até o corpo da cunhada, que aparentemente dormia pesado, embora ele quisesse acreditar que não.

            Naquele ano o natal de todos foi para o saco por causa do suicídio. Mesmo quem não estava tão abalado, a ponto de deixar de beber e comemorar, teve que entrar no luto pela família. Raticida com uma garrafa do rosé comprado para a comemoração. Félix achou que a cunhada parecia dormir no caixão, como quando a luz do corredor iluminava seu rosto no travesseiro, sempre que ele se levantava para mijar e secar o pau na toalha de rosto.

            Se pegou mais uma vez encarando a planta, quando a esposa entrou pela porta e quase fez com que se cagasse na calça do pijama com o susto. Achou que o calção da mulher parecia ainda mais apertado nas suas coxas flácidas como coalhada e cheia de veias azuis. Precisava concordar com ela, ninguém consegue fazer nada que preste depois das três da madrugada. 

            Não queria ter ficado ansioso, mas esse novo emprego estava acabando com ele. Pelo menos na produção ele nunca teve que levar trabalho para casa e nem ficava enrolado desse jeito. Seu negócio era apenas colocar as coisas nas respectivas caixas, de acordo com o tamanho. Mas todos havia adorado a promoção, principalmente a mulher, por causa quantidade astronômica de fraldas que tinham que comprar. Tentou assumir que era apenas uma fase, que estava ainda se acostumando com as funções e que logo dominaria tudo como ninguém.

            Quando se pegou mijando no vaso da planta, encarou como um sinal de que estava saindo do seu eixo e que devia parar de forçar a máquina.

            Seu mijo foi absorvido pela terra como se ela fosse uma esponja velha. Teve medo de que aquilo fosse feder. Porque fiz isso!? Imaginou a esposa entrando no seu escritório com seu olfato apurado e sentindo o cheiro, perguntando se por um acaso ele havia mijado naquele vaso. Não conseguiria mentir, teria que dizer a verdade para ela.

            Félix se curvou de olhos fechados para sentir o cheiro da terra. Deu apenas para perceber um pouco do fedor amargo, quando algo como uma mão lhe arranhou o rosto. Ele deu um salto para trás, tocando o ferimento e vendo sua mão ensopada de sangue.

            Se aproximou com cuidado ele percebeu longos espinhos ásperos no caule da planta, se perguntou como podia, depois de tanto tempo, não ter os notado. Eram como as garras de um gato selvagem. De dois dos espinhos pendiam gotas do seu sangue. Com muita raiva, começou a tentar arrancar as folhas da planta, como forma de vingança.

            Ao contrário do que parecia, as folhas eram muito firmes. Pareciam soldadas ao caule como barras em um portão. Não davam brecha para serem arrancadas sem que ele tivesse que cortar seus dedos nos espinhos. Sacudiu a planta com uma raiva vigorosa, como se fosse mesmo capaz de fazê-la sofrer pelo que lhe estava fazendo passar.

            O vaso virou no chão. Terra preta e pedrinhas brancas foram espalhada pelo carpete junto com o sangue de Félix. Havia conseguido arrancar uma folha, disso ele tinha certeza. Quando ergueu sua mão para checar, o que encontrou ao invés da folha foi uma mecha de longos fios de cabelo castanho claro.

            Assustado, Félix foi para longe da planta, ainda com a mecha da cabelo na mão. O ronco cavernoso de sua mulher, que vinha quebrando o silêncio pelo corredor, de alguma maneira diminuiu seu espanto. Conhecia bem os cabelos que segurava. Eram dela, da sua falecida cunhada, tinha certeza absoluta. Ainda dava para sentir o cheiro do shampoo que ela usava. 

            Com muito cuidado, ele recolocou a planta de pé, examinando de onde havia saindo a folha. Um líquido escuro e denso escorria do local. Pensou em arrancar mais uma folha, mas não queria machucá-la. No entanto, acabou não resistindo em partir um dos espinhos.

            Mari estava estirada no meio da cama, de pernas abertas e braços bem estendidos, quando o marido entrou e começou a sacudi-la pelos ombros. Quando abriu os olhos, deu um grito assustado por ter sido acordada no meio de um pesadelo terrível. 

            Ela estava descrevendo seu pesadelo, algo com aranhas saindo da sua vagina, quando percebeu, no meio da aflição do homem, o que ele balançava na frente dos seus olhos. Era um dedo indicador magrelo de unha ruída, que ela reconheceu muito bem.

            Assustada, a mulher ficou de pé com uma agilidade que Félix desconhecia, tirando o dedo de sua mão e analisando com cuidado. Ele lhe contou o que havia acontecido algum instante atrás. Em mais uma explosão, ela correu até seu escritório. Félix tentou avisá-la para que não fizesse nada, mas ao chegar lá, imediatamente a mulher quebrou mais um espinho da planta. 

            O casal ficou muito ansioso. 

           "O que virá agora? Um dedo?", pensou Félix. "Um dos dedos do pé, ou quem sabe um molar bem grande?". 

            Mas não foi nada disso. O que surgiu na palma da mão da mulher foi uma bola coberta de pelos marrons, do tamanho de uma bola de tênis, de onde logo de início eles puderam ver dois pontinhos escuros e brilhosos bem no meio.

            A esposa de Félix movimentou os dedos entorno da bola de pelos. Aquilo pareceu de alguma forma ativá-la, porque a coisa começou a se movimentar e mudar sua forma. Ela aumentou de tamanho, alongando suas oito pernas peludas e compridas que mantinha escondidas no dorso, se revelando uma aranha gigante. 

            A a mulher gritou de horror. Como se a imitasse, a aranha soltou um guincho alto e igualmente agudo, erguendo as patas dianteira. Muito velozmente ela saltou para o braço da mulher, cravando nele suas presas enormes e sacudindo-se, fazendo sangue e veneno escorrer. 

            Mari imediatamente ficou dura como uma estátua. Seus lábios ficaram roxos e seu corpo imediatamente gelou. Vendo que Félix se aproximava, a aranha gigante assustada saltou por cima do corpo da mulher e desapareceu correndo pelo corredor. 

            Félix checou o pulso da esposa. Estava fraco demais, quase não existia. Um tipo de espuma cor de rosa saia da boca dela. Os olhos estavam opacos e vazios, completamente abertos, mas nitidamente sem poder enxergar nada. 

            O marido entrou em desespero ao ouvir o choro do filho em uma crescente que parecia não ter fim. 

            Agarrando o vaso da planta, a única coisa próxima que atinou usar como arma, o homem partiu a toda velocidade para o quarto do bebê. Chegando lá, encontrou a aranha andando em círculos pela parede azul-céu do quarto, por um instante parando sobre a cabeça do urso no adesivo que dividia a parede, a menos de um metro da criança. 

            Dando mais um passo amedrontado a frente, Félix arriscou tudo em um arremesso com o máximo de sua força. O vaso se desmanchou por completo ao atingir a parede, esmagando a aranha, que se manteve grudado na parede. O mesmo líquido branco que escapou da folha da planta quando foi arrancada, agora escorrida pela cabeça da imagem do urso.

            Olhando para os restos da aranha gigante, quando se desprenderam da parede e caíram no chão como uma panqueca gosmenta, e se lembrando do pesadelo de sua mulher, sentiu que talvez houvesse entendido o funcionamento de tudo aquilo.

            Félix se abaixou com a criança, pondo seu pé direito sobre o caule da planta caída no carpete. Sentiu os espinhos perfurarem seu pé, mas não se importou. Agarrou uma das folhas da planta, buscando pensar naquilo que mais precisava no momento: um antidoto para mãe do seu filho. 

            Ela era sua companheira desde a adolescência, a mulher por quem se apaixonou desde a primeira vez que a viu atravessando a rua em direção a parada ônibus, em uma noite fria de inverno, onde estava tão chapado que nem reparou que seu manequim era mais ou menos cinco vezes maios do que das suas atrizes pornôs favoritas.

            Dessa vez não foi preciso fazer tanta força. A folha se soltou em sua mão e com ela veio de vez o fim da planta, que se enegreceu por completo, deixando apenas um pequenino pedaço arredondado de cor fúcsia no chão, que bem poderia ser uma semente.

            Quando abriu os olhos, Félix não pôde acreditar. Tinha mesmo conseguido algo que queria. Não era o antidoto para o veneno, mas pelo menos não precisava mais se preocupar com o relatório atrasado de sexta-feira.



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