AS CABEÇAS DAS NOSSAS MÃES

            O dia abafado fazia pensar sobre CO² e calotas polares derretendo. Não havia nenhum vento, e as galinhas combalidas ciscavam ao redor da cabana com suas asas e bicos abertos. Um homem pequeno de cabeça ovalada varria com sua vassoura de palha ao redor do seu santuário particular, enquanto mascava uma presa de porco como se fosse chiclete. Sem camisa e bem disposto, com um copo grande de chá preto gelado sobre a cadeira, ele parava de vez em quando para olhar ao redor. O suor escorria pelo seu rosto contrito. Queria deixar tudo limpo e arrumado.

             Satisfeito, escorou sua vassoura em uma árvore e pegou o copo de chá. Deu alguns goles e depois se sentou com uma postura perfeita na cadeira.

            Parece tudo de acordo, pensou. Só falta uma coisa.

            De repente houve uma explosão. Pode ver seu próprio sangue espirrar por cima do santuário, como lava quente e vermelha de um vulcão. Sentiu como se suas escápulas não existissem mais e seus braços ficaram caídos dos lados do corpo. Parecia um boneco de ventrículo abandonado, olhando para seu santuário e sorrindo enquanto morria. 

            Horas antes, quando o menino aceitou a oferta de ajudá-lo a limpar o terreno em troca de dinheiro, não tinha como imaginar que em algum momento, depois de pouco tempo arrancando infestantes, ele o chamaria para entrar na casa e acabaria tirando a cabeça da mãe de debaixo de um piso solto da cozinha. O menino chorão bem que queria que houvesse acabado por aí, para poder correr como nunca para casa e se esconder debaixo da cama, mas acabou sendo convencido a ir até os fundos, para o que segundo o homem era algo muito melhor debaixo das árvores.

            Antes tivesse sido apenas o trabalho de retirar pedaços velhos de sacolas plásticas presos em acácias espinhosas, pensou o menino. O que viu foram ossadas cinzentas empilhados com cuidado e penduradas com barbantes e arames nos galhos das árvores. Milhares de ossos por todos os lados, em uma harmonia de puro terror. Esqueletos completos, sorridentes e vestindo roupas esfarrapadas e sujas.

            O avô de Bruno ainda terminava de ajeitar a bermuda camuflada quando o menino terminou de contar a história. Havia saído correndo do banheiro com a gritaria do neto e nem havia se limpado direito.

            Ninguém seria faz uma coisa dessas, Bruno, disse o avô. Deviam ser apenas uma coleçãozinha de ossos de animais nos fundos da casa. Ele te pregou uma peça!

            O menino insistiu. Disse que eram pessoas de verdade, homens e mulheres, e alguns esqueletões pequenos que deviam ser de crianças, talvez anões. O homem tinha um papo esquisito, disse ele, sobre ser o único sacerdote de uma deusa antiga. 

            Bruno começou a ficar mais tranquilo quando o avô acendeu um cigarro e começou a pensar a respeito do assunto. Se isso for sério mesmo, disse o avô, um sujeito desses tem que ser finalizado. O avô sempre usava o termo "finalizar" quando tinha que matar algum dos porcos, ou um gavião que estivesse comendo as galinhas.

            Quando seu avô saiu para averiguar o caso, Bruno correu e pegou o rosário da falecida avó, dependurado em um prego sobre a cabeceira da cama. O avô havia dito que era para ele torcer para não estar enlouquecendo como as mulheres da família. Havia levado sua espingarda por precaução, enrolada em um saco de lona, caso o caldo engrossasse. Uma arma caseira, feita do pedaço de um cano condutor de gás, carregada de pregos, porcas e parafusos, com uma dose extra de pólvora para caça. 

            Bruno confiava no avô. Era um homem forte, que já havia sobrevivido a dois AVC's, mas não tinha como deixar de pensar sobre o que o homem havia falado para ele, enquanto bebiam chá no seu santuário de caveiras. Seria o último sacrifício, disse ele. O que traria a filha dos Titãs de volta ao nosso universo, a deusa do estupro, dos assassinatos e de todas as outras perversões. Passando o polegar sobre a imagem de Jesus Cristo no crucifixo, Bruno começou a rezar o Pai Nosso, pedindo para que esse último sacrifício não fosse seu avô.

            Em determinado momento, depois que as imagens da televisão da sala começaram a oscilar, bem no meio do programa de auditório, enquanto a roleta dos prêmios girava, e a temperatura despencou pelo menos dez graus abruptamente, o menino espiou pela janela e viu o céu todo pintado de preto no meio da tarde de verão, que até pouco tempo atrás estava ensolarada. Olhou para cima e o que viu o fez se molhar todo. Raios e relâmpagos eram como veias luminosas pulsando na imagem de um par de seios titânicos, que pareciam estar transbordando sangue, pouco abaixo de um monte de nuvens cinzentas 

            Com tudo ao redor tremendo como em um terremoto, o avô de Bruno entrou esbaforido na casa, correndo para fechar porta e janelas. Debaixo da mesa da cozinha, o velho segurou sua espingarda vazia como se fosse um ser humano primitivo da idade da pré-história com seu tacape. 

            O que faremos agora, Bruno?, o avô quis saber, tentando controlar os batimentos do velho coração. 

            Desenterramos as cabeças das nossas mães, respondeu o menino, abandonando o antigo rosário no chão.

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