TOXOPLASMOSE É A DOENÇA QUE SE PEGA DO GATO

            Dalva espiou para dentro do quarto escuro. A cama parecia vazia, mas havia um ser humano deitado nela. Ela se aproximou e olhou a pessoa definhando, sem conseguir identificar se era homem ou mulher. 

            Toxoplasmose, disse uma voz. a menina deu um pulo de susto. Havia uma pessoa no canto escuro. Uma adolescente com olhos puxados e cabelos muito pretos e escorridos. Ao contrário de quem estava na cama, seu corpo era robusto. 

            Toxoplasmose é a doença que se pega do gato, disse a mãe de Dalva, mais tarde. Segundo a mãe, a menina não deveria se preocupar com essa doença, porque a principal causa de mortes na família era mesmo o suicídio.

            Vinte anos depois, Dalva deu um sorriso desligado com essa recordação perturbadora. Na infância, sempre que assistia ao desenho do Gato Félix, tinha medo que o gato pudesse passar toxoplasmose para o cientista Poindexter.

            Como é estranho as coisas que nos lembramos, ela pensou. As memórias que surgem de repente, quando bem querem. Aquela pessoa na cama, definhando porque os gatos gostavam de cagar na horta dela...

            Ainda com uma réstia desse pensamento, Dalva enfiou uma sacola plástica na cabeça e pulou no rio. Sem essa história de "pedido de socorro", queria mesmo era morrer. Pensou que não demoraria, e que a sacola diminuiria a agonia de se afogar. Mais tarde ficaria sabendo que foi a sacola que a salvou, servindo como uma espécie de escafandro, mantendo uma quantidade mínima de ar necessária para que não morresse. Pelo menos não completamente.

            A fala de Dalva ficou comprometida. Não conseguia mais pronunciar palavras complicadas, como "toxoplasmose", por exemplo, e todo o seu corpo parecia precisar de graxa. Para ela o pior talvez fosse não poder mais ficar sozinha depois da tentativa de suicídio. Se perguntava o que pensavam que era capaz de fazer daquele jeito?

            Enforcamentos, intoxicações, veias cortadas, saltos para a morte, e até um arremedo de haraquiri estava na lista de suicídios da família, contava sua mãe. Uma maldição que teria começado depois que seu bisavô enforcou um gato amarelo no galho de uma quaresmeira nos fundos da casa. Um dia depois o homem se matou com um tiro no peito.

            Dalva considerava a história uma besteira, até seu bebê morrer em seu útero. Disseram que foi uma fatalidade o cordão umbilical ter se enrolado no seu pescoço. Em meio a uma forte depressão pós-parto, a mulher teve certeza de que não foi acidente. O bebê havia se enforcando em suas entranhas. No dia seguinte ao parto, ela decidiu que faria parte da narrativa fantástica da família.

           Graças a antidepressivos e o antipsicótico, Dalva se sentia melhor e consciente da suas besteiras ao concluir aquelas bobagens. Os médicos dizia que ela estava se recuperando bem, já podendo movimentar como antes o indicador e o mindinho da mão esquerda. Estava sentada no quiosque na casa dos tios, degustando o delicioso babá ao rum da prima recém casada, feito com limoncello. 

            Houve um comentário na mesa e as mulheres riram. Mesmo não achando a menor graça, Dalva acompanhou as risadas, pensando como os antidepressivos eram bons. Todos pareceram gostar de ouvir o som desengonçado que emitiu. O dia estava bonito e pediu que sua mãe lhe servisse mais um dos bolinhos.

            Antes ela não gostava tanto de doces. Algo mudou depois do acidente. Agora enchia seu café de açúcar - embora o médico houvesse dito para não consumir cafeína. Não tinha medo de terminar diabética. Achava que o pior já havia lhe acontecido. 

             Dalva bebeu um gole do seu café preto super adoçado, oferecendo os restos no prato para o gato sentado na cadeira ao lado. Era um animal elegante, completamente sem pelos, chamado Yul.

            As mulheres na mesa olharam a cena. As coisas estão dando certo agora, disse a tia. Não é todo mundo que consegue ser forte para sair dessa situação. Ela teve sorte dos homens na draga de areia terem a visto pular na água, observou a mãe.

            Foi um movimento rápido. Dalva possuía muito dos movimentos do braço esquerdo. O médico havia dito que aquilo acontecia pelo hemisfério direito do cérebro ter sido menos atingido. Dalva disse que aquilo não fazia sentido. O médico respondeu que muitas coisas no corpo humano ainda eram um mistério. Como o apêndice, por exemplo. 

            Em um segundo o braço de Dalva desceu, atravessando a cabeça do gato com o garfo de prata que compunha o enxoval da prima, fazendo parecer uma empada no centro do prato.

          Desnorteadas, as mulheres cobriram os olhos com as mãos, em resposta ao horror que sentiram ao ver os olhos do gato. Ouviram quando, com esforço notável, Dalva conseguiu dizer "toxoplasmose".

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