DEZESSEIS DIAS COM SANTOS DUMONT

Relato integral do repórter Ernesto Senna sobre os dias que passou com o pai da aviação brasileira

        Ernesto Senna foi um repórter carioca que não dispensou a proposta feita pelo jornal onde trabalhava, o extinto Jornal do Commercio, de acompanhar a visita de Santos Dumont ao Rio de Janeiro. Não foi por acaso que escolheram Senna para essa missão. Ele possuía um estilo muito distinto de narrar suas histórias. Algo que se enquadraria mais tarde no caráter do new jornalism. Por esse motivo, há quem chame Senna de percursor desse estilo de jornalismo no Brasil.

        O texto:

 
Ernesto Senna (1958/1913)
         Santos Dumont: magro, rosto alongado, olhos irrequietos e poucos vivos, emoldurados por uma aureola vermelha, com vestígios de suas alongadas vigílias de pesquisa. Bigode de pontas aparadas e curtas. Lábios deixando entrever uma carreira de dentes muito alvos, cumpridos e uniformes. Nariz afilado e pequeno de narinas dilatadas, orelhas pouco grande de lóbulos ligados a face. Cabeça pequena, pouco abundante cabelo, repartido no meio e emplastado pelos mais finos cosméticos. Calado, se move rapidamente, com a cabeça pendida para o lado direito, lançando um olhar de soslaio, sempre desconfiado, como quem comumente se sente despertado por um movimento estranho e desconhecido. Repetidamente movido por um cacoete nervoso, repuxa rapidamente o lábio superior para baixo. Sentado, dobra sempre a perna direita e comprime o joelho com a mão esquerda. Seu andar é sempre apressado, e tem por hábito, enquanto caminha, conservar os braços para trás das costas, apertando a mão direita contra a esquerda, e assim chega a andar 140 metros por minuto sem se fatigar. É um caminhante incansável. A não ser em casos de cerimonia, quando sobe a escada normalmente, galga qualquer escada de três em três degraus. Lépido, ligeiro, tem uma agilidade definidamente felina. Fala sempre apressadamente, e quando qualquer coisa o desagrada, repete: "não, não e não, absolutamente, não!". Tem o bom gosto de detestar joias, mas está sempre embebido nos melhores perfumes. Dumont é um tanto fetichista em relação ao seu chapéu panamá, que ele usa para baixo em abas irregulares. Afinal, foi com esse chapéu que em uma de suas acessões a Paris ele conseguiu abafar a explosão e o fogo que irrompera em um de motores, se mantendo com aquela calma que é tão peculiar, à partir de então, nunca se afastou desse chapéu. Desde esse dia memorável, consagrou ao chapéu todo o afeto e passou a considerá-lo uma espécie de mascote. Quando às vezes fatigado, se reclina e procura uma maneira de pousar, coloca o chapéu panamá sobre o rosto e adormece. E é a maior distinção que pode fazer a uma visita, adormecer em frente dela. Dumont só consegue conciliar com o sono estando na mais completa escuridão. Por menor que seja a réstia de luz, ela o incomoda, produzindo então uma profunda irritação. Ele só consegue se recuperar dessa sonolência irriquieta e de seu fácil despertar, quando está envolto na mais profunda escuridão. Por uma idiossincrasia que nem ele mesmo sabe explicar, tem um mal ouvido para música, não distinguindo sequer, entre uma valsa uma polca, ou um hino. Fala com profunda correção e sem nenhum sotaque, o francês, o inglês , o italiano e o espanhol, sem afetação nenhuma, como se tivesse nascido falando essas línguas. Adora flores, assim como os gatos, aos quais nunca dispensa muito carinho, e com os quais brinca efusivamente. Deita-se quase sempre a meia-noite, e acorda às seis da manhã, para o seu habitual passeio, esteja aonde estiver, e caminha sempre no ritmo vertiginoso já descrito. Santos Dumont na intimidade é alegre, brincalhão, é expansivo, e não se nota nele o menor vislumbre de vaidade ou de orgulho, apesar de seu muito reservado em suas opiniões. Jamais, diz ele, pronunciarei um só discurso. Sei me mover muito bem nos ares, mas não sei me mover nessa cerimonias nas quais querem me envolver. Escreve sempre com uma pena de pato, que ele mesmo produz e mantém em estoque onde quer que esteja. É sóbrio e muito parco na sua alimentação, e seu manjar predileto é camarão com quiabo. Adora bebidas alcoólicas, nunca almoça sem cerveja, nunca janta sem vinho e jamais deixa de consumir, aonde quer que seja, o melhor champanhe. 

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