NO FORRO

            Eram barulhos ininterruptos vindo do forro da casa.

            - Gabriel, é você?

            O calmante que tomo, misturado com bebida, às vezes afeta a memória.

            Peguei a escada na garagem para abrir a tampa do forro. Havia muita sujeira, um antigo abajur de bronze maciço, uma caixa com luzes de natal, e bem lá no fundo, num canto escuro, grandes olhos de um negrume indescritível olhando dentro de mim.

            Na pressa de fugir, me estatelei no chão e derrubei retratos que estavam na parede. Sentindo o perigo eminente que poderia vir atrás de mim, levantei o mais rápido que pude para a minha idade. Do lado de fora da casa, me perguntei: se aquilo não era o demônio, o que seria? E senti que aqueles olhos trevosos buscaram em mim sentimentos guardados nas memórias que pensei ter esquecido. E me afundaram nas dores da mais profunda melancolia, que nunca mais me deixaria em paz.

            Quando erámos crianças, vendo uma colheitadeira extrair café próximo de onde morávamos, com os caminhões passando rápido e próximos de nós, Gabriel teve a ideia de colocar um dos filhotes da nossa cadela Matilde na autoestrada. Mesmo tão pequeno, e comumente usando suspensórios, que lhe davam uma aparência tão nobre e comicamente madura, aquela criança inocente às vezes parecia possuir um mal terrível, que não era totalmente culpa dela. 

            Gabriel nunca colocou algum filhote de Matilde na autoestrada, mas o filho mais novo dos nossos vizinho acabou atropelado enquanto brincavam juntos naquele verão. Seus pais disseram que não autorizaram que ele saísse de casa, que ele em algum momento sumiu, e que nunca deixariam que brincasse próximo dos caminhões. 

            Depois de respirar, voltei um pouco mais calmo. Vi coincidentemente um dos retratos caídos era do meu irmão na última reunião da Província Eclesiástica de São Alcuíno. Caminhei de costas com a imagem e deixei ela em cima da mesa. Quando desisti de ligar para a emergência, catei um dos últimos cigarros soltos no armário. 

            Olhei meu irmão naquela foto. O último dia em que nos falaríamos. Foi dia em que Gabriel garantiu que estavam atrás dele pelo que aconteceu na paróquia. Tentei acalmá-lo, dizendo que cuidaram de tudo. Então ele tirou do porta-luvas um envelope com folhas de caderno dentro. Havia escrito seu testamento de próprio punho e queria que eu ficasse com ele. Nele estava a verdade, e pedidos de desculpas às crianças e para as famílias delas.

            A caligrafia naquelas páginas denunciava o estado mental de meu irmão. Deveria tê-lo internado mais uma vez, mas quando entramos, Gabriel parecia outra pessoa. Até conduziu uma pequena missa inesperada no jardim.

            Mais tarde, pensei em ligar para ele, para garantir mais uma vez que estava em segurança. Como sempre fui um irmão relapso, abandonei a ideia. Dias depois Gabriel foi encontrado morto na sacristia. Se enforcou no batente da porta que levava a um pequeno lavatório. Como estava despido, e haviam sinais de mutilação no corpo, suspeitaram de assassinato, mas sempre soube que estavam errados.

            Ele se matou porque infelizmente sempre foi louco. E para mim tudo havia acabado depois que fiz o reconhecimento do corpo. Assim, também queimei seu testamento e pus fim às vergonhas da família. 

            Minha médica garantiu que alucinações não estão entre os efeitos colaterais da medicação. Perguntou se eu havia bebido, e não pude negar. Além desse detalhe, disse que o que vi poderia ter sido o medo trabalhando em conjunto com minha imaginação. Tudo isso impulsionado pelos traumas recentes.

            Desliguei o telefone e me sentei no sofá. E só me senti melhor quando os pássaros começaram a cantar do lado de fora

            Naquela noite não houveram mais sons vindos de cima. Tomei meu desjejum, e depois, mesmo sendo uma pessoa cética, peguei um velho rosário de madeira na gaveta do aparador e pus no pescoço, antes espiar lá em cima mais uma vez. Precisava confirmar que minha médica estava certa.

            Antes de subir com a luminária de emergência, senti uma estranha pontada no coração. Então o desejo incontrolável de chorar me abateu. E foi o que fiz naquele momento, ao pé da escada, consciente de quão estranha era minha reação perante aquela situação inesperada.

             No forro, encontrei a mesma sujeira, o abajur de cobre maciço e a caixa com as luzes de natal, mas nada daqueles olhos trevosos em nenhum canto. No entanto, havia algo mais, não tão distante da entrada. Estava  fixado entre um conjunto de vigas. Era um envelope pardo, parcialmente queimado.

            Era aquele mesmo envelope pardo que vi queimar até o fim. Mas dentro desse, além da caligrafia e da escrita alienadas, estava uma mensagem deixada com algo além de tinta. Uma coisa de fácil tradução:  ESTOU NO INFERNO. ME AJUDE.


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