VINTE E CINCO

            Eu só queria um café preto antes de voltar para a floresta, mas tinha gasto o dinheiro todo numa barra de KitKat. Eu e minha esposa havíamos começado a brigar como um casal de adolescentes, quando uma velha muito bondosa chegou trazendo uma xícara pequena de café morno e ficou me vendo beber. 

            Todos ouviram o som de sinos e sentiram o cheiro de vinho tinto quando Yves voltou do banheiro. Seus cabelos pretos reluzindo tons de azul quando ela sentou ao meu lado. E a velha continuava lá parada, porque era novidade alguém do meu tamanho. Mas consegui terminar o café sem discutirmos mais. 

            Acendi meu cachimbo e atravessamos a rua. Subimos aquele morro, com Yves reclamando da minha desorganização durante todo caminho. Falava da incapacidade de seguir algo tão básico na minha existência. Eu sentia meus níveis de cortisol no limite, dor de cabeça e um ataque de pânico chegando. Deveria ser um leprechaun solteiro como todos os outros, eu pensei.

            - E então, cadê?

            Encontramos Kevin sentado com seu rottweiler na traseira da camionete 4x4. Meu filho Lugh estava  amordaçado em uma gaiola para animais de pequeno porte. Uma criança inocente, capturada enquanto fumava cachimbo sobre uma pedra na floresta.

            Kevin, que dedetizava casas para viver, tinha um morcego tatuado no pescoço e olhar de maluco, queria meu pote de ouro. Para seu azar eu escondi meu ouro tão bem, assim que me casei há muitos anos com Yves, uma cluricaun de adegas e depósitos de vinhos,  que não faço a mais remota ideia de onde o coloquei. 

                Está bem, você venceu, eu disse, balançando os braços. Entramos no meio do mato, andando pelos caminhos mais complicados para uma pessoa andar, com Kevin toda hora tropeçando e xingando atrás de mim, e aquele cachorro bufando no meu cangote. Ele trazia Lugh na gaiola.

                Encontrei aquele buraco, que poderia ser a toca de um coelho em meio as raízes. Apontei e garanti, com toda certeza, de que era ali mesmo. É melhor você ir primeiro, ele disse. E não estava errado, porque o buraco era um tanto apertado e assustador. E além dele poder ficar preso, tudo poderia ser uma armadilha minha. 

            Enfim, Kevin não era tão burro quanto parecia.

            Aquele lugar era maior do que parecia, e conforme descia, ficava mais desconfiado de que a menina não estava mais lá. Até que em determinado momento seus pequenos olhos verdes se destacaram naquela escuridão. 

           Madeleine continuava intocada pelo tempo. Ela sorriu ao me reconhecer depois de quase 20 anos. Quando a encontrei pela primeira vez, ela brincava com minhocas e raízes de árvores, como uma criança camponesa do século XIV, que foi abandonada na floresta para as bruxas.

            Entreguei o KitKat para Madeleine e ela concordou em me ajudar. Nos arrastamos mais fundo, seguindo por novos caminhos que foram abertos por Madeleine, com suas próprias mãos. Cômodos subterrâneos tão espaçoso que podíamos caminhar neles, e onde morcegos dormiam dependurados nas raízes no teto. 

            Eu não sabia o que Madeleine planejava quando saímos a uns 20 metros morro acima. Espiei entre a vegetação e vi Kevin com o cachorro. Ambos estavam atentos ao buraco. Kevin ainda segurava a gaiola, mas agora tinha uma lâmina pontuda e afiada na outra mão. 

            Quando Kevin viu Madeleine, deixou cair a gaiola e acalmou o rottweiler, que se assustou com aquela figura estranha. Os cabelos de Madeleine, que já foram louros, estavam pretos, e ela era coberta de uma imundice que agora fazia parte dela. 

            Compadecido pela menina, Kevin a pegou no colo, pensando que protegeria seus pés daquele frio. Mas logo constatou seu erro quando os bracinhos de Madeleine foram apertando seu pescoço, cada vez mais forte, como se fosse uma cobra píton.

            Nós leprechauns temos uma natureza bondosa, por mais que às vezes cometamos atos que possam ser interpretados como maus, e que sejamos mesmo capazes de fazer coisas horríveis aos humanos. Assim como Madeleine, que não acredito ter se tornado um ser maligno da floresta, que mata pessoas a bel-prazer. E no fim foi Kevin o errado em tentar apunhalar o corpo de uma menina de três anos com uma faca tão comprida. Depois disso ele caiu como um saco de batatas.

            Abrimos a gaiola de Lugh enquanto cachorro cheirava Kevin. Haviam algumas coisas estranhas acontecendo. Quando me virei, Kevin já tinha uma perna dentro do buraco, e não demorou para que desaparecesse lá dentro. Não entendi nada quando Madeleine tentou explicar, o que aconteceu, porque ela nunca aprendeu a falar direito.

            Talvez agora Kevin faça companhia a Madeleine no subsolo da floresta. 

            - Tem fumo? - foi a primeira coisa que Lugh disse quando tirei sua mordaça. Ele tinha um cachimbo escondido da manga da camisa, como todo bom leprechaun. Ele deu algumas baforas antes de montamos no rottweiler, para encontrar com Yves, que já estava muito bêbada da gasolina da 4x4.


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