VINTE E TRÊS

            Estava passando pano no chão, usando um produto novo de limpeza que comprei por pena de um menino no farol. Então meu gato entrou da rua com as patas sujas, passou correndo pelo piso molhado, foi para o quarto e subiu na cama. Comecei a ralhar com ele, percebendo seus olhos esbugalhados. Logo ele começou a grunhir, se encolher, e defecou tudo o que pode, antes de morrer agarrado no travesseiro.

            Conforme aquela cena sinistra se desenrolava, minha reação natural foi de me afastar. Tive a sensação de que o gato estava sendo sugado por um canudinho, e quando tudo acabou eu espiava do corredor.

            Deus do céu, o que poderia ter feito aquilo? Pelas marcas que ele deixou no chão, me veio a compreensão quase imediata, vendo ele naquele poça de merda sobre a cama. Só poderia ter sido aquele produto limpeza. Uma "fórmula da morte" descartada em algum lugar público, que aquele menino encontrou e se divertia vendendo por aí. Bastava o contato com a pele para trazer dor, agonia e morte. 

            Ainda não acredito que fiz aquilo. Sair àquela hora atrás daquele menino. Pensei que era burrice e uma amostra de descontrole, porque nunca o encontraria, mas pasme, encontrei as garrafas com o produto. Estavam no mesmo local onde as comprei na primeira vez, mas dessa vez com uma mulher.

            Ela se aproximou do carro quando parei. Pedi um momento e estacionei ao lado do seu ponto de vendas. Quando desci do carro, a mulher parecia bem animada, porque pelo jeito as vendas iam mal. Olhei bem no fundo dos olhos dela. Eram ensebados, escuros e feios demais. Olhos de uma pessoa de uma estirpe totalmente diferente da minha. Deveria se hidratar mais, eu aconselharia, se não estivesse ali para dizer que mataram meu gato. Mas era isso mesmo que eu diria para ela?!

            Quero todos os produtos. Vou comprar todos eles, agora. 

            Ela me olhou com um aspecto sério, que se tornou indulgente depois de uma tragada no baseado, que só percebi agora entre seus dedos da mão esquerda. E em vez de ficar feliz com a notícia, pegar o dinheiro e ir para casa, ela disse NÃO.

            O seu "não" já era esperado por mim. Por isso nem insisti depois da resposta. Sabia que ela não queria vender todos os seus produtos de matar, porque iria acabar com a diversão deles.

            Ela era bem mais jovem, alta e forte do que eu, mas eu carregava um soco inglês no bolso, e com ele consegui derrubá-la com golpe forte no maxilar. Me empolguei um pouco, pensando no gato e na sujeira em cima da cama. Quando parei, ela parecia estar na mesma condição do gato.

            Ouvi gritos histéricos de uma mulher desesperada, que veio ver o que acontecia atrás da placa. Ela estava atrás de mim, me olhando, com a filha no colo. Depois correu para dentro do carro, e nem prendeu a criança na cadeirinha no banco de trás antes sair com o veículo.

            Me apressei em carregar o carro com todas as garrafas, e voltei para casa com elas. Comecei a rir quando fechei a garagem, e então parei de rir. E se não fosse nada daquilo? Pensei. Porra, os gatos da vizinhança estavam sendo envenenados com composto 1080 o mês todo...

            Bati de porta em porta, distribuindo garrafas coloridas para meus vizinhos mais próximos. O policial militar aposentado que varria a calçada cinco vezes ao dia, a professora do jardim de infância, a família de negros, e o velho dos lulus-da-pomerânia.

            O outro dia foi um dia de sol, como todos os dias de verão estavam sendo naquele ano. Quando espiei pelo postigo da porta, depois de ouvir muitos gritos de terror e lamento, qual não foi minha felicidade ao constatar que não havia matado uma mulher inocente.


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