TRINTA E DOIS


            Nas memórias de Gunnar, a gangue dos Irregulares, formada por ele e mais quatro amigos, estava reunida no porão do Cine Metrópolis, em meio a poeira e pôsteres amassados e manchados de filmes que ninguém tinha interesse em assistir. A péssima ideia do pai de Solveig de colocar em cartaz apenas filmes do cinema expressionista alemão ainda seria o principal motivo do Cine Metropolis fechar as portas antes do final daquele mês.

            Gunnar era o mais jovem da gangue dos Irregulares, tinha 11 anos naquela época. Os mais velhos haviam adotado ele primeiramente como mascote, por acharem seu estilo parecido com o de Johnny Rotten, mas passaram a respeitá-lo como membro importante do grupo pelas suas atitudes. Já naquela idade Gunnar vivia arrumando confusão, quase nunca indo a escola, fumando os cigarros Chesterfield que roubava do pai, e quebrando janelas e vidraças por diversão. Estava sendo frequentemente recolhido pela polícia, e os pais já não sabiam o que fazer com ele. 

            - Esse menino vai terminar nos matando em uma noite dessas, Anni-Frid! - Gunnar lembra do pai dizer.

            - Sejam fortes e não desanimem, pois o trabalho será recompensado - a mãe respondia, citando um dos seus trechos favoritos das crônicas da Bíblia.

            O motivo dos Irregulares estarem no porão naquele dia, era que Bengt, o único negro da gangue, havia conseguido comprar algumas gramas de cocaína barata da meia-irmã, e quase todos, com exceção de Gunnar, estavam interessadíssimos em experimentar a droga.  Para Gunnar, mesmo que a cocaína fosse novidade, o interesse maior naquele momento era  a edição da Playboy de julho de 1983, com a atriz italiana do filme "A Cidade das Mulheres", Donatella Damiani, e seus peitões enormes na capa, que Christer de algum jeito havia conseguido e estava usando para enfileirar a droga com um cartão da mecânica do pai.

            Pareceu muito fácil para Gunnar, quando a cocaína entrou pelo nariz de Solveig, Bengt, Christer e Rolf, e ele riu das expressões faciais que os amigos fizeram quando aspiraram a droga. Quando chegou a sua vez, Gunnar cheirou com força, e toda cocaína entrou rasgando para dentro do seu nariz. Logo ele sentiu uma grande excitação, seguida de euforia e plena sensação de prazer. Cocaína é muito bom, foi o que pensou no primeiro momento, com ranho escorrendo pelo nariz. A droga fez ele desejar entrar na revista para devorar os seios pontudos de Donatella Damiani com uma colher, como se fossem duas bolas enormes de sorvete. 

            Mas não era apenas a cocaína, havia outra surpresa na mochila de Bengt. Uma coisinha preta pequeninha, que Gunnar pensou ser um relógio ou talvez um isqueiro, mas na verdade era uma Beretta 950B que Bengt disse haver comprado, mas na verdade roubou do avô. Bengt estava olhando muito "Miami Vice" naqueles tempos, e pensava que conseguiria ganhar dinheiro traficando drogas, já que segundo ele os policiais eram todos muito estúpidos.

            A arma foi passando de mão em mão, como um brinquedo qualquer, até que chegou na mão de Gunnar, que nunca se importou com armas de fogo, menos ainda naquela fase da vida, quando havia acabado de descobrir a masturbação. Sinceramente, ele preferia muito mais um bom canivete borboleta do que qualquer arma de fogo.

            A arma era tão pequena e esquisita que nem parecia uma arma de verdade aos seus olhos de Gunnar. Mas ele entendeu que talvez houvesse algumas vantagens nela para um adulto muito grande, que poderia engoli-la ou enfia-la no cu se quisesse escapar de uma revista da policia, sem ter que jogar a arma fora.

            E então, surpreendendo a todos, houve um BANG! 

            O som reverberou naquele pequeno espaço, e logo se ouviu as batidas apressadas de passos vindos do andar de cima. Quando Gunnar olhou ao redor, viu que quase todos os garotos estavam escondido atrás das pilastras, e ele podia ver bem o branco dos olhos arregalados deles.

            Todos os olhos, exceto os de Bengt.

            O olho direito de Bengt, que estava estirado de costas no chão, soltava um fino esguicho de sangue escuro, como água saindo de uma mangueira de jardim quando se obstruiu a maior parte da saída com o polegar. Quando o esguicho de sangue cessou, todos sabiam que o adolescente havia morrido de vez. A bala de 6.35 milímetros depois seria encontrada cravada na parede de tijolos, após ter acertado bem no meio do pôster colorido de "O Consultório do Dr. Caligari".

            O som dos paços continuaram sendo ouvidos, e parecia que os adultos nunca chegariam. Mas em algum momento chegaram. Eles deram para trás quando viram o corpo de Bengt e o menino de 11 anos segurando uma arma, até que enfim Gunnar colocou a pistola no chão e foi imobilizado como um criminoso adulto e perigoso.

            Chega de gangue infanto-juvenil, drogas e cigarros para o jovem Gunnar. Até do Freddy Kruger, seu gambá de estimação, que vivia em uma gaiola para frangos, nos fundos da sua casa, eles se livraram. Gunnar acabou internado no maior e mais rigoroso internato para menores infratores do país. Uma escola pioneira, e uma das últimas a abolir a prática muito condenada de testar drogas farmacêuticas nos alunos. Medicamentos de aprendizado, eles chamavam na época.

            Tiveram que arrastar Gunnar até a Kombi cor amarelo coroa de louros da Escola-Internato Internacional de Dommo (Interdom), estacionada na frente da casa. Segundo o juiz, era isso ou cinco anos no reformatório estadual, que era como um presídio de segurança mínima. Todos os vizinhos assistiram sorridentes a cena de Gunnar sendo arrastado, e Caohm, o mais velho da rua, chegou a bater palmas. Todos imaginavam que por um bom tempo estariam seguros. Até mesmo os pais do menino, que estavam mais assustados do que nunca. Afinal, agora Gunnar era um assassino.

            Demorou um bom tempo para que a culpa da morte de Bengt florescesse em Gunnar. Mas depois de dois anos preso atrás dos muros daquele colégio, refletindo sobre os conceitos de sociedade e sendo drogado com psicotrópicos em fase de teste, ele começou a se sentir mal pelo que fez. E com o tempo essa culpa foi aumentando e aumentando, até se estabelecer dentro dele para os anos que viriam.

            Quando Gunnar chegou viu que os outros garotos, que estavam na instituição a mais tempo, andavam todos cabisbaixos, como se carregassem um fardo muito pesado, mesmo sendo tão jovens. Logo Gunnar estaria desse jeito também. Já nem lembraria como eram lindos os seios da Donatella Damiani, muito menos sentiria algum prazer com a masturbação, levando em consideração pela primeira vez as palavras da mãe, que dizia que o sexo não deveria ser praticado egoisticamente, mas partilhado dentro do relacionamento matrimonial.

            Claro que nos primeiros meses apenas os piores pensamentos habitavam a mente de Gunnar, e ele insistiu em tentar fugir algumas vezes atravessando o telhado de zinco do refeitório e pulando pelo único pedaço de muro que estava sem arame farpado. Queria poder pôr as mãos em uma arma novamente, para ir atrás das pessoas que o colocaram ali. Vingança total e sem clemência. Repetia que se achavam que ele iria melhorar, estavam errados, ele seria o demônio em pessoa. Sem educação ou controle, ele roubaria, mataria e estupraria os velhinhos como Caohm. 

            Gunnar queria seguir com seu conceito de existência anárquica de menino de 11 anos que cheira cola de sapateiro quando os pais saem para trabalhar. Diferente do que os seus pais, professores, vizinhos, ou do que o Jesus Cristo na bíblia da mãe fazia. Sem complicações inventadas para haver desculpas para criações de regras de censura, como toda criança gostaria que sempre fosse. Mas aos poucos o menino foi descobrindo que aparentemente na vida em sociedade as coisas não podiam ser assim como ele gostaria.

           - Por que você se dá a tanto trabalho? Porque não se aquieta, apenas toma os comprimidos e engole o choro? - disse um dos colegas de quarto a Gunnar em uma noite, quando Gunnar havia acabado de voltar do quarto escuro por ter defecado em uma caixa de revistas na biblioteca, em um momento de distração do monitor da turma. Apesar de não ser negro, para Gunnar esse colega estava começando a lembrar muito Bengt. Sua cama ficava ao lado da dele. - Você pode espernear a vida inteira se quiser, e defecar em todas as caixas de revistas da biblioteca. Não adianta. É mais fácil você acabar virando morcego naquele quarto escuro.

            Nessa época Gunnar estava começando a perder as forças. O seu maior medo estava se concretizando, e o pior de tudo era que ele já não achava isso tão ruim. Baixe a cabeça, mantenha a boca fechada, respeite os superiores e o modelo de convivência. Gunnar estava enfim se tornando um jovem como aqueles que encontrou quando passou pelos portões de ferro dessa instituição de ensino, que mais parecia uma grande fábrica de tanino do que um colégio.

            O que Gunnar mais lembraria desse lugar onde passou dois anos da vida, seria o fato de ser um ambiente muito religioso e cheio de cores pastéis. Um lugar controlado 24 horas por meio de normas e reprimendas físicas e morais, por parte de professores e monitores, onde a filosofia do subordinado passava logo a imperar na cabeça dos alunos. Principalmente no que se referia ao sujeito gordo e estrábico de bigode largo, que obrigava os alunos a escutar ABBA, e tinha o título de diretor, chamado sr. Himmler.

            "Gime! Gime! Gime!" e "Take A Chance On Me" eram os hinos da Interdom, graças ao sr. Himmler.

           Nessa instituição de doutrinação os alunos tomavam uma pílula amarela de manhã e um comprimido branco à tarde. Assim ficavam calmos e concentrados em tudo que ensinavam. Era algo na linha do projeto MKULTRA da CIA, Gunnar iria recordar. Matemática, história, latim, biologia, música, artes, sociologia, literatura... Gunnar na época admitiria que era mágico focar no que colocassem  na frente dos seus olhos.

            O momento que estabeleceu a descrença absoluta em Gunnar de escapar dali, aconteceu numa tentativa de assassinato praticada por um dos alunos. O rapaz conseguiu, depois muito, muito tempo, arrastar aos poucos com seus pés, uma pedra de granito branco, com aproximadamente quatro quilos, sem ninguém perceber, por quatro andares de um dos prédios do Interdom. Pouco a pouco, após dias, semanas e meses, dando pequenos empurrões, sem nenhum aluno, monitor ou professor reparar, sendo um plano secreto apenas dele, esse tal aluno conseguiu fazer a pedra chegar a uma das partes abertas do corredor lateral. A culpa por desse incidente cairia totalmente sobre os monitores da ala C, que passariam a ser ainda mais rigorosos com os alunos.

            A pedra de granito branco foi empurrada pelo aluno e caiu por quase 20 metros, aterrissando por acidente no ombro de uma das faxineiras, que naquela momento estava varrendo o pátio de atividades físicas. O objetivo do interno, ele confessaria mais tarde, não era aquela pobre funcionária, mas um dos monitores que estava fumando próximo a ela naquele instante..

            Olhando para a pedra lambuzada de vermelho, caída ao lado da mulher que agonizava de dor, as energias de Gunnar se esvaíram por completo. Ele olhou para aquele sangue e pensou em Beight morto no chão do cinema, com o olho direito furado por uma bala que ele disparou. Mais do que isso, a ideia que nasceu em sua cabeça era uma certeza de que não tinha mais forças de lutar contra eles.

            O menino da pedra, que lembrava muito o amigo de Gunnar, Christer, nunca mais foi visto. Todos imaginavam que ele havia sido preso permanentemente em um dos quartos do sótão, mas a verdade nunca ninguém descobriu. Provavelmente acabou transferido da Interdom para um centro socioeducativo para menores infratores perigosíssimos.

            Seus pais adoraram. Seu garoto agora tinha modos, e sabia se comportar na frente dos adultos, como era o correto. Não havia resquícios da sua antiga personalidade antissocial, da violência, ou dos seus gostos estranhos por filme gore, como Fome Animal, Pink Flamigos, Videodrome, Rato Humano, ou Evil Dead. Ele não roubava mais cigarros, nem gostava de sair por ai à toa jogando pedras nas janelas dos vizinhos.

            Enfim, estava tudo bem.

            Nunca mais Gunnar encontrou com algum dos Irregulares. Queria evitar deixar Ulvaeus e Anni-Frid preocupados. Mas ficou sabendo que Rolf virou ajudante de distribuição de multi inseticidas Raid, em uma outra cidade. Parecia que tinha tomado jeito também, disseram seus pais. E soube que Christer havia morrido esmagado por um Corcel. Uma falha no macaco hidráulico enquanto ajudava o pai com a mecânica do veículo. Embora algumas pessoas comentassem que a morte foi intencional, planejada pelo pai, que havia encontrado dias antes no quarto do filho uma revista voltada ao público gay.

            Agora no hospital o doutor examinava os olhos de Gunnar com uma lanterna clínica. Ele estava acordando e desacordando há dias depois da tentativa de suicídio, que havia sido adiada por anos até acontecer naquela manhã de domingo. 

            Logo que viu o médico, Gunnar achou tê-lo reconhecido. Parecia Solveig, o líder dos Irregulares, só que mais adulto e totalmente careca. Ainda em confusão, nos primeiros momentos Gunnar começou a falar sobre assuntos da gangue com o médico, e perguntou o que haviam feito com arma, porque ele precisava dela para assassinar os pais. Obviamente não houve nenhuma respostas por parde do médico. 

            Solveig tinha uma longa cabeleireira e queria ser baterista de uma banda de rock psicodélico. Não seria aquele cara esquisito, jamais, pensou Gunnar.

            - Provavelmente uma amnésia traumática devido ao choque - disse o médico, em resposta a pergunta do que aconteceu. - Mas não se preocupem, é provável que seja algo temporário. 

            - De quanto tempo nos estamos exatamente falando, doutor? - quis saber Agnetha, esposa de Gunnar, surgindo por detrás da figura roliça do sogro, com seu top decotado da academia. O médico melhor sua expreção e ajeitou a postura ao vê-la

            - Uma ou duas semana, talvez, senhora. - respondeu o médico, colocando as mãos nos bolsos do jaleco - Perdas de memória como essa não costumam durar muito tempo. Seu marido já teve muita sorte. Em casos como esse os pacientes costumam ficar em coma.

            - E nós podemos falar com nosso filho? -perguntou a mãe, que segurava um porta-retratos com a imagem do Papa Pio.

            - Podem sim, claro, mas uma pessoa por vez - respondeu o médico. - E é importante ressaltar que provavelmente ele não se lembre dos últimos vinte ou trinta anos, por tanto talvez não reconheça a esposa ou o filho.

            - Não entendo. Como você pode saber disso? - perguntou o pai, com sua voz robótica de laringe eletrônica. Seus dois maços diários de cigarro não lhe fizeram nada bem depois de quase três décadas como fumante inveterado.

            - Nós fizemos muitos exames nessas últimas horas, senhor - respondeu o médico, agora tirando as mãos dos bolsos do jaleco.

            Acompanhada pelo médico, Agnetha foi até o quarto, depois de muito insistir, mesmo com o risco de não ser reconhecida. Queria ter certeza de que o marido estava bem. Queria pelo menos ouvir algumas palavras dele.

            - Deus não nos dá um fardo maior do que podemos carregar - disse a mãe de Gunnar, depois que nora os deixou na sala de espera, apertando o porta-retratos contra o peito.

            Desde sempre Gunnar foi um homem de aparência triste. E embora isso tenha diminuído um pouco nos primeiros anos de casamento, e principalmente com a chegada do filho, no último ano toda a melancolia havia voltado com força total, sugando ele para dentro do que os especialistas chamavam de "redemoinho do suicídio". O pior era que Agnetha percebia que o marido estava a contagiando aos poucos. Ela já havia começado a se sentir melancólica às vezes, o que era fora da sua natureza.

            Pensando na melancolia que envolvia o marido, prestes a entrar no quarto, Agnetha começou a desanimar. Sabia que do outro lado encontraria um homem fora de forma, envelhecido precocemente, praticamente assexuado e deprimido, que ela sentia estar de algum jeito cultivando em alguma parte do cérebro o câncer que iria matá-lo. E o pior é que ele iria gostar disso.

            Agnetha teve uma grande surpresa quando a enfermeira abriu a porta azul.

            O homem preso na cama levou um susto quando a viu, e  Agnetha pode perceber como eram bonitos e azuis seus olhos quando estavam assim esbugalhados. Os cabelos de Gunnar ainda se encontravam arrepiados por causa da descarga elétrica que recebeu ao enfiar o garfo na tomada, mas Agnetha ficou impressionada ao reparar que o choque parecia ter feito bem ao marido. Mesmo que a descarga elétrica tenha esfarelado sua mão direita, Gunnar aparentava estar até mais jovem aos olhos da esposa.

            - Min kärlek! - disse Agnetha, com um biquinho que há tempos não fazia.

         Agnetha se aproximou e apertou com força seus seios bronzeados no rosto avermelhado de Gunnar, e quando se afastou, viu algo inédito. Não era apenas a maior expressão de felicidade que ela já havia visto no rosto do marido, mas também o maior sorriso que Agnetha já viu em toda sua vida. Era como se tivessem posto um afastador labial para que Gunnar exibisse todos os dentes para um dentista. 

           Além do sorriso, Agnetha também percebeu outra coisa latente naquele momento: a enorme ereção de Gunnar, que transparecia através do cobertor branco do hospital e podia ser vista pela enfermeira e pelo médico no quarto. A mulher tentou disfarçar de alguma maneira, colocando a mão sobre aquele volume, mas o grotesco gemido de contentamento que Gunnar soltou em resposta ao toque deixou toda a cena mais contrangedora, fazendo médico e enfermeira se retirarem do quarto.

            Depois de ficarem a sós, Agnetha apertou mais uma vez os seios no rosto do marido, para que ele tivesse mais daquilo, se o estava fazendo tão bem quanto parecia, e para que ele sentisse seus batimentos apaixonados. 


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