LITZA

            Os tambores pararam quando os olhos de Cuauhtzin se arregalaram. Seu corpo cor de bronze e cheio de tatuagens ficou branco como papel e tombou de cabeça no chão de terra, aos pés do xamã. 

            Ele havia escolhido o cesto com as cobras.

            Cuauhtzin era um mentiroso!

            A figura da jovem Litza, que havia voltado do buraco sem fundo, falava a verdade. Haviam demônios na floresta arrancando as cabeça dos índios. Com o sagui-peguimeu a tira colo, ela ainda em juramento disse que deveriam fugir para tentar sobreviver.

            A tribo precisou deixar seus velhos para trás para subir o morro as pressas. No caminho as crianças apontavam  para a escuridão da mata e diziam ver olhos vermelhos e um sorriso cheio de dentes sujos de sangue.

            Foram dias de profundo terror e noites cheias de pesadelos para essa pequena tribo. Se tivermos sorte, pensavam os homens, poderemos subir as montanhas e pedir abrigo aos mazatecas, que sempre foram gentis conosco.

            No segundo dia alguns quetzapacas se recusaram a cruzar as correntezas do rio em meio a tempestade. Eles assistiram em desespero enquanto os que entenderam que aquela era a única saída atravessavam. 

           Durante a noite os quetzapacas que cruzaram o rio tiveram que tentar abafar os gritos vindos da outra margem, com antigas cantorias da tribo.

           Os demônios eram reais. Agora todos tinham certeza. Em meio aos olhares confusos das crianças que restaram, os quetzapacas fizeram orações desesperadas a Quetzalcoatl, o deus Serpente Emplumada. 

            Uma das crianças literalmente morreu de medo com o som de uma trovoada.

            No quarto dia houve um complô formado por Náhuatl e Painal, considerados os mais fortes e bravos homens da tribo, para terminar o sacrifício de Litza. Não concluir, segundo eles, fazia com que Quetzalcoatl não os protegesse mais.  

           Por intervenção do líder Huascar, filho do xamã da tribo, que foi deixado para trás, o sacrifício não aconteceu. Segundo o líder, Litza não havia trazido o demônios, que se alimentavam do medo e do desespero dos quetzapacas.

            No quinto dia, depois de Náhuatl e Painal desaparecerem sem deixar rastro,  foi praticado canibalismo, com restos humanos encontrados na relva, próximos a um pequeno lago formado pela água da chuva. Muitos dos índios entendiam que os restos encontrados pertenciam aos bravos caçadores, mas a fome terrível que sentiam fez com que ignorassem esse pensamento e continuassem comendo. 

            Há muitos anos o canibalismo não acontecia na tribo. 

            No final daquela noite, os poucos homens que restaram lutaram contra um grupo de mulheres, esposas de Náhuatl e Painal, que queriam se suicidar nas águas do rio. Uma delas conseguiu desaparecer nas correntezas, outras duas foram amarradas com cipós, e o resto sumiu na mata. 

            Os olhares desvairados das mulheres que ficaram amarradas, assustaram tanto os índios, que no final elas foram soltas e desapareceram na escuridão da noite.

            No sexto dia o restante dos homens desapareceu, sobrando apenas o jovem Miztli. Mais tarde o cadáver de um deles foi descoberto. Ele não possuía cabeça, mas pelas tatuagens foi possível identificar Huascar. Sua carne foi aproveitada como alimento.

            Houve uma sensação coletiva, que os quetzapacas não conseguiam entender completamente, por nunca terem compreendido a prática da cultura, de que aquilo que os estava caçando tentava prolongar suas vidas dando alimento.

            No sétimo e oitavo dia, os últimos quetzapacas se sentiram agraciados por encontrar um lugar elevado, que aparentemente o terror ainda não havia descoberto. Haviam árvores frutíferas, e eles puderam enfim descansar. Por tradição, tentariam não mais falar nas coisas ruins que haviam acontecido. Viveriam felizes, ignorando a existência dos entes queridos e as memórias que dividiam com pessoas que ficaram para trás.

            A pequena tribo sabia que estava próxima dos maztecas e dos oxomís, e se sentiam muito aliviados por isso. Algumas quetzapacas até mesmo já começavam a pensar em iniciar a próxima geração com o jovem Miztli.

            No nono e décimo dia as coisas correram bem, a tribo avançou mais um pouco. Mitztli se mostrou um grande pescador. As mulheres começaram a ter coragem de entrar na mata mais uma vez, e iniciaram a busca por material para fazer um abrigo. Eles agora cultuavam Huitzilopochtli, o deus asteca do sol e da guerra.

            Nesse dia a menina olhava de longe o otimismo dos índios. Sua expressão era apática, uma escuridão cintilava no interior dos seus olhos. Sentiu uma sensação prazerosa quando torceu o pescoço do pequeno macaco, que estava no seu colo, e depois ao atirá-lo no rio. 

            Ela abriu um sorriso descomunal, que ia de uma orelha a outra. Totalmente desproporcional para sua pequena cabecinha. Se algum dos quetzapacas tivesse olhado para a sua figura naquele instante, teria visto manchas de sangue em seus dentes pontiagudos.

            A forte correnteza daquela manhã levou o corpo do sagui-peguimeu de volta para casa. Até lá já haviam acabado as horas de vida da que se tornou, por instantes, a última dos quetzapacas viva. Presa nas profundezas do buraco que acreditavam não ter fim.


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