EXPERIMENTO

            "Quase sempre eu via os fachos de luz invadindo a casa. Eu ia para debaixo da cama, com uma garrafa de café preto adoçado em excesso, e ficava lá até o meio-dia. Depois me arrastava para a sala e tentava organizar meus pensamentos escrevendo. A primeira coisa que escrevia era: eu odeio você, sol!".

            O homem de chapéu bateu na porta do poeta albino Bernard Bernard. Era verão e o sol acertava aquela casa com força total. Ela era a única casa totalmente fechada na rua. O homem continuou batendo, e algumas pessoas olharam curiosas para aquela cena, que se repetia de tempos em tempos. Nenhuma delas alguma vez viu quem morava naquela casa. Eram apenas sons, vultos e boatos a seu respeito.

            O homem tirou o chapéu, mostrando uma calvície bastante avançada, e secou o suor da testa com um lenço. Depois desceu a rua, dobrou a esquina e deu a volta na quadra. Nos fundos da casa não haviam tantas pessoas para olhar. Ele pulou o pequeno muro e enfiou a mão pelo buraco do vidro quebrado na porta, girando a chave no lado de dentro e retirando o ferrolho de fio redondo.

            "Quando eu ouvia as primeiras batidas, não me importava, mas depois ficava assustado com a insistência. Mesmo sempre sabendo quem era, o pânico começava a me assolar, como sempre acontecia nessas datas. Como bom claustrofilo que era, me sentia mais confortável me fechando na dispensa e me trancando dentro de um armário velho. Lá eu me sentia seguro, no escuro, e mal conseguia ouvir as batidas".

            O interior da casa estava muito quente quando o homem entrou. Tinha cheiro de mofo, era tomado de poeira e teias de aranha. Ele deixou o chapéu sobre a mesa da cozinha, acendeu um cigarro e foi soltando fumaça pela casa. Entrou na dispensa, abriu um dos armários, que estava quase vazio, e começou a colocar ali caixas de café extraforte, açúcar refinado e pacotes de amendoim japonês que ia retirando da bolsa. Quando terminou, abriu o armário em que Bernard estava, soltando uma longa baforada no rosto do poeta, que teve um ataque de tosse e lacrimejou.

            - Você precisa de ajuda? - perguntou o homem sem chapéu.

            - Trouxe o café extraforte? - perguntou Bernard Bernard. Ele se recusou a sair do armário. Quando o homem sem chapéu perguntou onde estavam, Bernard disse que na sala, como sempre. Eles se referiam aos novos poemas de Bernard. Aquele era o acordo.

             No sofá sempre havia um caderno cheio de garranchos. O homem sentou lá, apagou o cigarro na mesinha de centro e leu os novos poemas.

            - Dr. Helmut? - chamou Bernard, depois de uma hora, agora em pé no corredor, olhando para a parte traseira da cabeça do homem sentado no sofá. Ele ergueu sua garrafa de café, fantasiando com a ideia de acertá-lo em cheio na área sem cabelo, e continuar batendo naquela cabeça quando caísse no chão, assim como ele insistiu em bater na porta.

            O dr. Helmut Hodierna estava estudando novos meios de tratar perturbações da ordem psicológica. Sua ideia principal era de que o cérebro humano, quando atinge o ápice da aversão ou do descontrole, faz uma curva no caminho da degradação e restaura suas faculdades. Uma reconstrução natural do aparelho psíquico, é o que ele dizia.

            - O que é matahara? - perguntou o dr. Helmut.

            - Um termo japonês para maltratar mulheres grávidas ou puérperas - respondeu Bernard Bernard.

            O dr. Helmut selecionou algumas dezenas de páginas, colocando-as em uma pasta vermelha. Ele levantou do sofá, e percebendo que Bernand havia sumido, foi até o pé da escada e começou a falar em voz alta, para que o poeta escutasse de debaixo da cama. Ele convidou Bernard para visitá-lo quando quisesse. Bernard sabia o endereço, não era longe dali. Poderia ser a qualquer hora do dia ou da noite, ele disse. Fez isso como sempre fazia, em todas as vezes em que saia daquela casa nos últimos anos.

            - Você não tem medo que ele se mate? - perguntou a mulher do doutor, em uma noite quando já estavam na cama, tendo um interesse repentino no caso, ao invés de focar na leitura no romance de Catherine Millet. O Dr. Helmut sorriu com a pergunta, bastante sonolento, e respondeu que se acontecesse, Bernard Bernard seria apenas um misantropo que invadiu uma das casas em seu nome e lá morreu. 

            O doutor não sabia que Amelita era apaixonada pela poesia de Bernard, tendo feito cópias de todas as anotações que o marido arquivou no escritório. Ela nunca comentou isso ao dr. Helmut, mas considerava Bernard um daqueles tipos geniais que são chamados de louco por toda vida, até serem descobertos postumamente. 

            "Eu conseguia ver a aranha parada no meio da teia, totalmente imóvel, como eu sentado no chão do quarto. Não esperava que ela fizesse nada inspirador, mas tinha certeza de que se um dia conseguisse entender a magia que envolve o ato de tecer fios de seda tão finos, conseguiria escrever poemas elementares".

            "- Olá - ela disse. E eu dei um pulo, ficando imediatamente de pé. Era uma mulher bastante alta, com longos cabelos pretos, segurando uma pequena bolsa contra o corpo. Saberia mais tarde que era Amelita Helmut, esposa do doutor. Ela queria me conhecer melhor, e eu não deveria dizer ao seu marido que ela esteve ali. Aquilo se tornou um hábito, e aos poucos, de tanto ficarmos próximos um do outro, uma magia aconteceu pela primeira vez em minha vida. Como a aranha na teia, nós criamos algo".

            Aquilo foi uma amostra do inferno, bem na segunda-feira de Páscoa . Os bombeiros só puderam assistir. Ninguém tinha realmente certeza se aquela casa um dia teve moradores. Era uma casa muito antiga. Mas quando o fogo permitiu, encontraram nas cinzas os restos de um homem. 

            Antes desse acontecido, Amelita estava muito estranha. Mais feliz do que o normal. E para o dr. Helmut notar algo assim, deveria ser uma mudança e tanto, ele também pensou. Os dias passaram e isso seguiu, começando a incomodá-lo. Ele sentava no escritório e não conseguia mais trabalhar direito, com os barulhos de alegria e excitação que a esposa fazia pela casa. E quando ela sumia ele se sentia pior. Então um dia o doutor Helmut bateu em Amelita, bem na boca, quando a esposa disse algo seguido de uma risada. Ela perguntou o que foi aquilo, e ele disse que era um estudo, apenas, e bateu nela de novo.

            O doutor também bateu com força naquela porta, mesmo com as mãos machucadas pelos dentes de Amelita. Aquilo era uma tradição sua. Gostava de imaginar o albino lá dentro, a beira de um colapso.

            Helmut entrou pelos fundos, como sempre. Não viu Bernard em parte alguma, nem dentro do armário quando foi guardar as compras, mas encontrou seus escritos na sala, como sempre. Ficou boquiaberto, porque dessa vez não eram dezenas, mas talvez centenas de páginas de caderno completamente preenchidas por garranchos, espalhadas pelo chão. Helmut juntou meia dúzia delas, acendeu um cigarro e começou a ler.

            "São cartas de amor. Uma alteração perceptível na escrita", percebeu o dr. Helmut, logo de cara. "Mas que delírios sexuais são esses, Freud!?".  

            E depois de um tempo.

            "Uma mulher como essa eu gostaria de encon".

            "Tenho certeza de que ele não me viu descer as escadas. Nem eu o vi entrar, porque ando dormindo mais e melhor. Isso estava fazendo bem para mim, eu acho. Desci enrolado nas cobertas, e ele estava no sofá, lendo as coisas do chão, como sempre fazia, feito um rato. Me aproximei segurando minha garrafa de café, sabendo bem porque não me importava se ele encontrasse o nome dela naquelas páginas. Não pude resistir quando vi aquela careca pela última vez. Inconscientemente tentei enterrar minha garrafa no meio dela, acertando a cabeça de Helmut com toda minha força. Repito, foi sem querer. Mas eu gostei. Primeiramente pensei que ele estivesse morto, mas havia me certificado de que respirava antes de deixar a casa".

            O cigarro ainda estava queimando, acesso debaixo do sofá, sobre uma página rasgada de caderno, com o desenho de uma vulva.

            "Meus incisivos estavam frouxos e meu rosto inchado, mas eu não sentia mais o corte no lábio arder por causa do whisky com gelo. Não sou de beber, estava decididamente me excedendo naquele dia. Talvez não fosse por causa da agressão, mas pela loucura acumulada nos anos de casada com um excêntrico e sádico "filhinho de papai". Talvez fosse mais uma fantasia que eu resolvi realizar, eu não sei".

            "Mesmo depois de 12 anos de casamento, das lembranças que eu guardava com carinho, da enorme biblioteca e da situação econômica do país, eu iria matá-lo quando ele chegasse em casa". 


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