VULCAN


             Ele sorriu e fez uma graça para disfarçar seu desgaste físico ao puxar mais uma vez a corda de arranque com suas mãos dentro de luvas de algodão.

            As crianças riram alto, como filhotes de hiena.

            Sua assistente de palco, que também era sua namorada, olhou para ele com apenas a cabeça de fora da caixa preta e lustrosa, dando a entender com seus pequenos olhos azuis o quanto ele estava ridículo fazendo aquilo.

            Enquanto ajeitava sua cartola, pequena demais para sua cabeçona, o mágico tentou lhe dizer algo por entre seu sorriso quadrado, que a moça não conseguiu entender. Era que ela estava muito bonita com as lentes azuis.

            Quando finalmente a coisa ligou, acabou assustando as crianças que não esperavam pelo barulho. Sua namorada havia lhe dito para não fazer esse truque em uma festa infantil, mas ele insistiu que precisava praticar.

            O mágico acelerou a motosserra semiprofissional, assustando mais as crianças. Uma ou duas delas saíram correndo e entraram na casa, algumas outras começaram a chorar.

            É de brinquedo, mentirinha, disse uma mãe transexual  para uma das crianças ao seu lado, que começava a chorar. A mulher tinha quase 1,90 de altura e usava uma camiseta amarela com estampa dos Simpsons.

            Quando o mágico ergueu a motosserra sobre a caixa, todas as crianças seguraram o fôlego, e ele sentiu que algo muito estranho aconteceu. Um tipo de peso maior começou a vir da motosserra, é era sentido cada vez mais forte pelo rapaz. 

            O mágico olhou para as crianças. Quase nenhuma delas tinha ainda todos os dentes de leite. Todas estavam concentradas, rapidamente acostumadas ao barulho da motosserra. Elas olhavam para a corrente com 6.400 rotações por minuto, sabendo pelos desenhos animados o que ela era capaz de fazer.

            O jovem mágico tentou lutar contra a força que o dominava, mas por ser uma pessoa muito sedentária, não teve como conseguir vencê-la, e no fim acabou cedendo. 

            O sabre de 15 polegadas desceu com velocidade. Sangue foi espirrado em profusão em quase todo o público infantil. Algo caiu e saiu rolando pelo palco improvisado de tábuas madeira. As crianças salpicadas de vermelho riram de alegria, achando muita graça daquilo tudo.

            "Filhotes de hiena!", pensou o mágico.

            É tudo de mentirinha, disse outra vez aquela mãe com camiseta dos Simpsons. Dessa vez ela tremia e estava cobrindo os olhos da mesma criança que havia tentado acalmar há pouco tempo atrás.

            Todos esperaram pelo gran finale, mas o mágico não estava mais lá. Ele havia saído de fininho pelos fundos, deixando a motosserra ligada, soltando fumaça no palco. O emblema da Vulcan estava parcialmente coberto de sangue.

             Depois desse incidente, o nome da empresa de motosserras e outros equipamentos manuais Vulcan, ganhou muito destaque. O grande número de menções da marca da motosserra envolvida no caso fizeram com que a mídia atentassem sobre as marcas dos objetos envolvidos em acontecimentos violentos como esse. 

            Desde acontecimentos que poderiam ser relativamente comuns, como a falha de um macaco hidráulico que acabou esmagando um mecânico, ao uso de uma marreta oitavada por adolescente que decidiu assassinar a própria mãe, foi percebido que a Vulcan tinha uma presença 12x maior que as outras quatro maiores marcas de ferramentas manuais disponíveis mercado, sendo que os casos começaram a aumentar exponencialmente depois da tragédia na festa infantil.

            Começou a ser percebido também o envolvimento das ferramentas Vulcan em muitos eventos que causaram deformidades, como amputações dos dedos dos pés ou das mãos por serras circulares, cegueira causadas por máquinas inversoras de solda e esmerilhadeiras, até um curto circuito em uma plaina elétrica que causou queimaduras de 2º grau no rosto de um homem. Além disso, suicídios usando extensões elétricas Vulcan, vendidas com carretel, também ganharam bastante destaque.

            Não se sabe se pela fama que a marca obteve, ou não, um modelo específico de machadinha Vulcan com cabo de fibra de vidro passou a ser, nos anos seguintes ao caso do mágico que decapitou a namorada, a arma mais usada nos crimes de assassinato em que o marido mata a esposa.

            Apesar da sua aparente qualidade material e funcionalidade dos seus produtos, a Vulcan fechou suas portas em maio de 2013. Hoje, autênticas ferramentas Vulcan são peças de colecionador, encontradas apenas em sites de vendas de usados na internet, ou em lojas especializadas em excentricidades. 

            "Porque você serrou a cabeça da sua namorada" foi a última pergunta que eu fiz ao mágico, antes de deixá-lo voltar para sua cela, fazendo ele reforçar mais uma vez sua resposta.

            A aparência do mágico não era boa. Imagino que sua vida na prisão fez com que envelhecesse bem rápido em pouco tempo. Pelo seu tipo físico, as coisas deviam ser muito difíceis para ele lá dentro.

            "Você já deve ter percebido que não sou um psicopata", ele disse. Realmente o teste de Rorschach havia mostrado isso algumas vezes. "Eu nem gosto de filmes de terror", ele disse. "Sempre duvidei que uma motosserra pudesse cortar alguém sem que o sangue fizesse o negócio pifar".

            O sangue seco realmente fez com que a motosserra precisasse ser limpa para que voltasse a funcionar. Por motivos óbvios, ela foi deixada do jeito que o mágico a deixou.

            Apesar de tudo, o mágico se mostrou um sujeito calmo, depois de se recuperar do choque do acontecido. Não havia sinais de fantasias homicidas ou tendências violentas naquele cara. 

            "Acho que as pessoas loucas agora têm algo para culpar", disse o mágico.

            Assim como eu, o mágico tinha uma personalidade bastante racional.

            Em 2016 eu redigi a Lista de Homicídios e Acidentes Estranhos Vulcan, com todos os 693 casos violentos envolvendo produtos da marca Vulcan. Fiz entrevista com todos os envolvidos, pesquisando um pouco dos seus passados, além de entrar em contato com os fabricantes e idealizadores dos modelos dos produtos, e nunca encontrei nada fora do normal. 

            No fundo o que eu esperava era ao menos algum tipo de história estranha. Talvez referente a algum funcionário que cometeu suicídio colocando a cabeça debaixo do martelo de forja, por exemplo. Algo que desse a entender uma origem sobrenatural para os casos da Vulcan, e que desse mais potência ao meu livro.

            O ex-fundador da Vulcan mora dentro de um espaço de terra com dois mil metros quadrados. Divide uma bela casa a beira de um imenso lago artificial com cascata, com uma linda esposa, um velho bull terrie muito nervoso, e duas araras-vermelhas. Ele é um homem religioso, metodista, assim como a esposa, e diz viver em paz sob os olhos do seu deus, e também das câmeras de monitoramento espalhadas pelo lugar.

            "Meu amor por ferramentas começou quando minha avó me deu um kit-infantil de ferramentas", ele disse. "Nele vinha um pequeno serrote, que cortava galhos finos, uma fita métrica corporal, um martelinho vagabundo, e algumas outras coisinhas que não me lembro mais".

            Estávamos bebendo rum Bacardi à beira da piscina. Sua esposa estava olhando um reality show na televisão da sala. O cachorro estava com a gente, dormindo em um sofá de fibra sintética.

           Perguntei a ele sobre as histórias a respeito do seu envolvimento com seita A Ordo Templi Orientis (Ordem do Templo do Leste), criada pelo químico austríaco Carl Kellner. "Tudo mentira!", foi sua resposta, para isso e também para o velho clichê de ter feito um trato com o diabo em troca de sucesso financeiro rápido no mercado. 

            "Sou cristão metodista e rico de nascença. Não acredito no diabo", ele disse. "Está na hora das pessoas colocarem na cabeça que a humanidade deve se responsabilizar pela sua natureza assassina".

            Antes de ir embora, o ex-presidente da Vulcan me presenteou com a famosa machadinha com cabo de fibra de vidro, que algumas dezenas de maridos já usaram para assassinar as esposas. Ela ainda estava na embalagem original.

            Em casa eu possuía uma vasta coleção de ferramentas Vulcan. Furadeira/parafusadeira, furadeira de bancada, soprador e aspirador de folhas, kit para jardinagem, uma pequena coleção de estiletes, martelos, machadinhas e machados, um facão tercado, e, dentre outras coisas, claro, uma motosserra. 

            Eu já havia usado um bom número de ferramentas Vulcan, e nada me havia acontecido. Em um momento maluco, cheguei a cortar meu casaco, de tão próximo que cheguei das correntes da motosserra, mas não houve nenhum desejo incontrolável de continuar e cortar ele fora, como no princípio imaginei que fosse acontecer. Nem mesmo de usar uma das machadinhas para abrir a cabeça da minha mulher.

            Houve esse final de semana  em que eu e meu filho fomos construir sua casa na árvores. Eu iria tirar o pó das ferramentas paradas no galpão. Passamos o dia inteiro envoltos com a construção da casa, que ele queria muito, usando apenas ferramentas da marca Volco.

            Enquanto martelava ou serrava as tábuas, eu fantasiava com coisas terríveis. Seria tão fácil, eu pensava, usar essa ou aquela ferramenta da maneira errada. Ou seria a certa, para uma ferramenta Vulcan?

            Lembrei do caso de Bete "Frankenstein", que teve um ataque cardíaco fulminante durante sua última tentativa de criar um morto-vivo, usando sua furadeira de impacto Vulcan 3/8 com uma broca de 14mm. O mesmo modelo que eu usei com meu filho naqueles dias em que construímos a casa na árvore. A vítima, uma menina de 13 anos, voltava da escola quando foi abordado por Bete, uma anã de 1,35 metro dirigindo um carro popular adaptado. 

             A menina teve muita sorte de ter conseguido sobreviver naquele dia, tendo apenas um pequeno buraco na cabeça, que nem atravessava seu crânio. Normalmente as vítimas de Bete Frankenstein eram encontradas na rua, caminhando como o monstro de Frankenstein interpretado por Boris Karloff, com um buraco em alguma parte da cabeça e água sanitária no cérebro.

            Vendada e ainda meio dopada de Rohypnol, a menina disse que tropeçou em algo no caminho. Esse algo era a pequena Bete, morta aos pés da escada de casa. 

            "Eu não senti nada quando ela furou minha cabeça", disse a adolescente, anos depois, sorrindo em um programa de televisão, com uma marquinha quase invisível na testa. 

            Naquele final de semana eu e meu filho conseguimos terminar sozinhos a casa na árvore. E ela ficou muito boa, diga-se de passagem. Posso afirmar, com certeza, que se houveram momentos para eu entrar na Lista de Homicídios e Acidentes Estranhos Vulcan, todos eles aconteceram naqueles dias. No entanto, empurrei o menino da casa da árvore.

            Meu filho deu meia volta no ar e aterrissou de cabeça na grama. Feito um grande urso de pelúcia, ele ficou lá embaixo, de bunda para cima e com o pescoço quebrado.

            Naquele dia, olhando para seu corpo de cima do deque da casa da árvore, eu lembrei do que o mágico disse na sala de visitas. 

            Talvez as pessoas loucas só tivessem algo para culpar.


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