FORMIGAS

        As poderosas mandíbulas das formigas cortavam o que encontravam pelo caminho. Devoção cega no comprimento do dever em abastecer o ninho, alimentando suas irmãs e fortalecendo o reino de sua rainha.                                                                                                                             
      - Siga elas até a estrada do ninho com isso - disse o vendedor. Ele estava com um pulverizador cheio de deltramina nas mãos, um poderoso veneno de formigas. - Enfie essa mangueira lá no fundo e borrife até cansar. Mas tome cuidado!

         - É muito venenoso, é?

        - Sim, claro que é, mas não é só isso. Essas formigas são monstrinhos. Já viu a imagem de uma delas no microscópio? Elas cortam o seu pau fora se você der bobeira, 

        O vendedor ergueu a mão direita mostrando a ausência da primeira falange do dedo indicador.

            - Foi uma formiga que fez isso?

          - Não, eu arranquei nos aros de uma bicicleta quando era criança. Só quis dar o exemplo.

            Depois de considerar os riscos por um momento, Ernesto subiu morro atrás das formigas, com a certeza de que era impossível uma delas entrar na sua cueca asa delta. Não demorou para ficar impressionado com a distância que já havia percorrido, muito maior do que esperava. Já começava a senti a dor nos joelhos e nos músculos das pernas, que não eram acostumados a esforço. Se perguntou quantos quilômetros os insetos eram capazes de percorrer para chegar aos legumes da sua esposa. 

            As formigas continuaram, por aclives e declives, desviando de objetos que surgiam no caminho, ou desaparecendo por debaixo deles e ressurgindo do outro lado. Carregando pedacinhos multicoloridos da vegetação, insetos mortos ou ainda vivos, e tudo o que pudesse agradá-las. Dava para perceber que para as formigas não havia limite de tamanho, porque em grande conjunto elas podiam matar ou dividir qualquer carga entre elas, cortando em pedaços menores. 

            Em determinado ponto, a trilha dos insetos se dividiu em outras três trilhas diferentes, que vinham de pontos bem distinto, formando uma grande estrada de formigas, que desaparecia do outro lado de uma cerca alta, um local advertidamente proibido para pessoa por uma placa bem grande com os dizeres: ÁREA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL. ENTRADA PROIBIDA.

            Foi uma péssima ideia, pensou Ernesto, seguindo atrás das formigas por aquele caminho. Além disso, considerou que ainda teria que enfrentar todo o trajeto de volta e tinha medo de se perder. Sentado em uma pedra para descansar por um momento, sentiu que podia ouvir o som dos passos das formigas, indo e vindo pela estrada. Era como as águas de um córrego. Se caísse no meio delas, imaginou que seria esmigalhado feito uma cigarra e levado para o ninho. Com esse pensamento, borrifou um pouco de veneno em cima das formigas, se sentindo um pouco mais satisfeito.

            - São apenas formigas. Não podem me fazer mal nenhum - disse Ernesto, rindo sozinho na floresta.

            Seguiu em frente, um pouco melhor da dor, pensando que talvez no futuro entendesse a importância daquilo. Afinal, agora era um homem do campo e tinha que cuidar do que era seu. Subjugar as forças da naturezas.

            Um som lírico começou a ser percebido do meio das árvores. Aos ouvidos de Ernesto, parecia ser um tipo de música clerical. Seguiu o caminho do cântico, percebendo que as formigas também o acompanhavam. Gostaria de poder identificar o idioma cantado, mas para era impossível para ele. Concluiu que certamente era latim, já que a maioria dos cânticos religiosos são nessa língua morta.

            Não muito longe dali, Ernesto descobriu um corpo estendido de costas no chão, sobre um espaço de relva alta, entre arbustos espinhosos. Usava um vestido roto com desenhos de flores e calçava botas cano alto de couro. Ernesto percebeu que o caminho de formigas ia direto por entre suas pernas e desaparecia debaixo do vestido. Diria que ela estava morta, não fosse o som que fazia. Ele chegou mais perto, para ter certeza que a melodia saia dela. Ficou relutante em determinado ponto, quando próximo de ver o rosto. Tinha medo que se estivesse mesmo morta, pudesse ser um tipo horrível de cadáver desfigurado. Imaginou as formigas atravessando por dentro do seu corpo e saindo por sua garganta, nariz e cavidades oculares...

            Um passo por vez, bem devagar, deixou as solas dos seus velhos e confortáveis tênis de caminhada tocarem com suavidade o chão. Ele ergueu os galhos finos com muito cuidado para ver melhor o que havia ali.

            Era uma mulher jovem, de traços rechonchudos e nada bonitos. Tinha o rosto sujo, mas era possível perceber que sua pele era muito alva. Para Ernesto, parecia uma grande boneca de porcelana abandonada. O espanto o paralisou quando viu que seus grandes olhos de íris escuras estavam abertos, olhando para as folhas das árvores. Os raios de sol, que atravessavam as folhas como se fossem uma peneira, deixavam pontinhos de luz no seu rosto. Apesar do seu peito não se mexer, viu que os lábios dela se movimentavam.

            A segunda coisa que Ernesto se perguntou, olhando para o vestido da moça, foi para onde todas aquelas formigas estavam indo, já que não havia mais nenhuma formiga depois dali. Então se aproximou, mais confiante, pronto para dizer alguma coisa a ela, quando os olhos da mulher giraram e o encararam de modo acusador. Por um momento Ernesto se sentiu como um invasor que tinha acabado de entrar pela janela da casa de alguém. O grito histérico da mulher soou pela floresta como uma sirene de incêndio, trazendo com ele pequenos pontinhos escuros. Eram as formigas. Os insetos furiosos logo estavam por todo o seu corpo. 

            Ernesto desistiu de tentar gritar, coberto por formigas. Também desistiu de tentar alcançar o gatilho do borrifador. Resolveu que não era hora de perder tempo e decidiu correr o máximo que conseguia, se cortando nos galhos, quase furando os olhos nas folhas dos pinheiros, acertando as árvores no caminho e rasgando as roupas na cerca ao atravessá-la.

             Morro acima e morro abaixo, ele foi se estapeando, com o corpo cheio de formigas. Tão forte que de vez em quando perdia o equilíbrio e caia no chão. Enquanto corria desesperado, completamente desnorteado pelo terror, seu borrifador ia sendo carregado por dezenas de formigas obedientes e desaparecia debaixo do vestido.

            Em meio ao pânico e a dor das mordidas, Ernesto já planejava espalhar a notícia da bruxa das formigas vivendo na floresta. Uma feiticeira cuspidora formigas, panejava dizer. Voltaria com mais pessoas, com cruzes e coisas do tipo e fariam como na inquisição. Penduraria a desgraçada pelo pescoço em uma corda bem alta e colocariam fogo, nela e nas suas formigas! 

             Ernesto parou apenas quando viu os fundos da casa. Estava muito ofegante, com as pernas tremendo, quase não conseguira em pé. Pelo menos estava a salvo e não sentia tanto as mordidas dos insetos. Foi quando olhou para a parte da frente da calça e viu a enorme mancha de sangue. 

             

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