ANA

           Uma estrela cadente cruzou o céu aos olhos de Ana, que olhava pela janela cozinha, com sua xícara quente de chá entres mãos. Nessa noite nublada, ela teve sorte das nuvens darem espaço para que testemunhasse aquilo e fizesse um pedido. Logo choveria.

            Estava chegado ao fim mais uma noite insone, com barulhos do marido pela casa. Em meio a suas crises, ele chafurdando em documentos e álbuns de família. Fazia lanchinhos na cozinha e assistia filmes antigos na sala. Desconfiava que mais uma vez ele não estava tomando os antidepressivos. Na semana passada queria comprar uma arma de fogo. Ana chamou a atenção para a total inexperiência do casal. 

            "Não existe mistério, é só atirar até a outra pessoa cair", disse o marido. 

            Ana se perguntou se ainda era uma boa esposa, e já sabia a resposta: não se importava mais. Mas sabia que alguma coisa tinha que mudar ali, e a única das duas coisas que ainda possuía essa capacidade era ela. 

            Ana queria ter herdado a facilidade que a mãe tinha em ficar sozinha. A principal regra da casa era não incomodá-la quando estivesse na máquina de escrever. Seu relacionamento com a mãe não foi tão relevante quando a dela com seus leitores. Havia essa lembrança da infância, uma conversa sobre acreditar em estrelas cadentes.

            Ana deixou a xícara na pia cheia de louça. Canecas sujas de sopa de micro-ondas, pratos com cascas de pão, copos sujos, talheres com crostas de comida grudada. Ela naquele momento não tinha paciência para lidar com aquilo. Não antes de um bom banho quente. Felizmente tudo agora estava quieto e calmo. Depois de certa idade, a companhia um do outro acaba importando cada vez menos, pensou Ana. A imagem do parceiro se torna apenas um tipo de ruina que lembra dos bons tempos. Dias felizes onde o sexo ainda era, na pior das hipóteses, razoável. Quando podia andar na chuva sem que um resfriado pudesse ser uma sentença de morte.

            Envelhecer era mesmo muito triste, ela constatou.

            Quando abriu a porta do quarto, o que viu fez com que se sentisse em um mundo a parte, onde coisas bizarras, alheias ao seu universo, aconteciam como em filmes de terror. Seu marido estava enfurnado no guarda-roupas, se enforcando com um cinto de couro.

            Quase imediatamente, Ana fechou a porta, com a imagem do marido na memória, como uma fotografia no interior das pálpebras. Seus olhos vermelhos apertados e o rosto inchado fazendo uma careta. Com os pés escorregando no chão do quarto, talvez ele quisesse voltar atrás, pensou.

            Voltando a abrir a porta, Ana espiou para ver como ele estava. Seu rosto havia mudado de cor para uma escala leve de roxo. Ela podia perceber que sua tentativa de tentar por um fim na própria vida, definitivamente não estava saindo como ele queria.

            Devagar Ana entrou no quarto e caminhou até o marido, reparando na bagunça que ele havia feito ao retirar as gavetas do roupeiro para poder usar a barra dos cabides como apoio. As gavetas empilhadas haviam desmoronado, e principalmente o conteúdo de uma delas se espalhou pelo chão. Ele não conseguia se manter em pé porque escorregava nas calcinhas de Ana.

            Seus dentões amarelos cerrados, as veias pulsando na testa, os olhos vermelhos agora saltados, sua cara de sapo-boi, a pujante barriga para fora do pijama de flanela que ela havia lhe dado, e a poça de urina que se formava no piso do quarto. Ana observou os detalhes se perguntando se ele conseguia vê-la naquele momento, parada bem na sua frente. 

            Ana estendeu sua mão para dentro do guarda-roupas e pegou sua capa de chuva.

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