ENGRENAGENS

            As engrenagens giravam diferente na noite do acontecido. Soltavam fumaça colorida e faíscas luminosas. Faziam o som de tamborins e castanholas, enquanto ajudavam a subir e descer os cilindros daqueles sistemas intrincados.

            No manhã do dia seguinte, cozinhando debaixo de um cobertor, ele se esforçava para transformar o que havia feito em um faz de conta. Um sonho estranho, com uma grande reviravolta. Tentava se esconder da culpa pelo que fez a única pessoa que conseguiu convencê-lo de que amava alguém.

            Subindo a maré negra de melancolia em sua cabeça, lembrou que suas engrenagens ainda funcionam, diferente das dela, amarrada a uma balança no fundo do mar, com uma trincheira aberta no crânio.

            Ouviu mais sons vindo da cozinha. Pensou que uma hora teria que levantar e ver o que era. Considerava estar sozinho, e pensou na possibilidade de serem ratos. Queria ligar para a polícia e confessar o crime, e depois para a mãe, e dizer que sempre soube do desperdício que foi.

            Mas acima de tudo, queria se mataria. 

             Chutou a pequena pistola para longe ao se levantar, sem querer a escondendo debaixo da cômoda. Ao abrir a porta do quarto, constatou o óbvio, depois de recuperar a visão por causa do choque da luz. 

            Banhadas por uma superabundância de luz do sol, estavam os filhos da mulher, abrindo gavetas e portas dos armários, chafurdando a procura de alguma comida. 

            O menino de cueca em cima da cadeira segurava um pacote de carne congelada, recém retirada do freezer. Disputava a carne com a irmã, que vestia uma camiseta velha do Pantera, que quase cobria seus pés. Pareciam poder indicar suas idades apenas com os dedos de uma mão.

            As crianças olharam curiosas para o sorriso sujo e descontrolado do homem. Ele estava parado sob o marco da porta do quarto da mãe delas. Um tipo estranho e pequeno, com uma grande careca tatuada. Seus extintos de sobrevivência não haviam decidido se começariam a chorar, mas estavam pensando seriamente na ideia.

            - Cadê a mãe?! - a menina perguntou. 

            O homem secou suas mãos suadas na calça. Olhando para o chão, reparou que estava com os pés descalços. Olhou para a parede e viu o buraco que havia feito, menor que uma moeda de um centavo, entre o fogão e janela do mirante. A laranja intacta e o resto das frutas estavam no chão, junto com o cesto e uma garrafa quase vazia de vodca.

            Não fique nervoso, pensou. São apenas pessoinhas. Não podem te fazer mal. 

            - A nossa mãezinha?! - disse ele. 

            As crianças se olharam confusas e não disseram nada.

            Ele pegou um como de água na pia e se sentou no assoalho. Não tinha certeza se era com crianças ou cachorros que era melhor se ficar na mesma altura para conversar. Não queria que elas ficassem assustadas e o obrigassem a fazer algo que não queria. Seus olhos vidrados chamavam tanto a atenção das crianças quanto suas lágrimas. Com os ombros inclinados para a frente, as crianças pareciam ávidas por uma explicação razoável. 

            Afinal, onde estava a mãe delas?

            Há pouco mais de duas horas, enquanto elas dormiam, o estranho havia a arrastado pelos braços até o carro, depois subido para limpar as manchas de sangue com a cortina da cozinha, que colocou dentro de uma sacola de supermercado e também enviou para o fundo do mar. Mas ele nunca descreveria esses detalhes para os pequenos... 

            Se quisesse fazer direito, teria que explicar como perderam o controle das engrenagens na noite passada. A vida de verdade, não o que mostram nos desenhos animados. Falar da atração entre um homem e uma mulher, e explicar porque não foi totalmente sua culpa sua.

            Resolveu começar com uma historinha simples de entender.

            - Vocês dois por um acaso conhecem a estória de Guilherme Tell?

            Em uníssono as crianças responderam que não.

            - É uma estória muito antiga, sobre a tirania e um jogo mortal... - disse ele, estufando seu peito magrelo. Acabou contando a história do homem que assassinou a amada por acidente, com um disparo de arco e flecha, em uma noite de exageros, com abuso de substâncias e sexo oral. As crianças ficaram interessadas, principalmente na descrição da morte. Viu um brilho nos seus olhos quando falou da ocultação do cadáver. 

           - Ele deveria ter praticando mais a pontaria antes de tentar acertar a laranja na cabeça dela - disse a menina.

            - Talvez, mas um dos efeitos do álcool é prejudicar suas capacidades motoras. 

            - O que houve com o homem? - perguntou o menino, mastigando o pacote de carne. - Ele também foi assassinado?

            - Para ele não houve outra saída além do suicídio. Um tiro de pistola bem no ouvido.

            - E os filhinhos da moça? - perguntou a menina. 

            A imagem das crianças mortas fez com uma espécie de fluído, como uma argamassa, se formasse em sua cabeça. Sentiu ela escorrer pelos ouvidos e pela nuca, até sua espinha. 

            "Se eles sumissem, você poderia fugir!", uma voz sussurrou em seu ouvido. "Afinal de contas. que vidas miseráveis teria essas duas sem a mãe?". 

            Reparou que já estava de alongando demais. Olhou para o relógio na parede e viu que era quase hora do almoço.

            - Bem... Dessa parte eu ainda não sei - disse, se encolhendo como saco plástico no fogo.  

            Sem querer derrubou o copo com água. A água escorreu até uma pequena mancha seca de sangue, esquecida próxima ao rodapé. Havia agarrado a garrafa de vodca e a segurava como um neandertal seguraria seu tacape. Seus olhos eram apenas uma brecha, um espaço em branco de onde lágrimas continuavam escorrendo. 

            As crianças começaram a gritar alvoroçadas.

            Estavam tão concentrados na história que não ouviram a porta. Quando ela se abriu, a imagem da mulher a sua frente fez o homem sorrir de orelha a orelha. Para ele, foi como uma aparição da Virgem Maria. Lá estava a mãe das crianças, com seus cabelos azuis molhados da água salgada, sem ferimento aparente. Ele abraçou os filhos com todo seu amor.

            - Meu Deus do Céu, vocês deve ter nadado uns... 16km! - disse ele.

            - Soltar as correntes foi o mais difícil -  a mulher respondeu. 

            - Vocês devem estar famintos, meus amores! - disse ela, apertando as bochechas dos filhos. - Eu vou cuidar disso, não se preocupem.

            Se despindo da roupa molhada, feito uma cobra que troca de pele, a mulher ficou totalmente nua na cozinha, em frente deles. Deixou visível uma longa cauda rosada coberta por uma fina penugem branca, que manteve todo esse tempo em segredo do homem. 

            Provavelmente ela estava enrolada por debaixo do vestido, ele pensou. 

            A imagem da cauda e dos seus dentes agudos como agulhas de crochê, não causaram espanto ao homem. Ele estava feliz demais por não ser um assassino.

           Com um salto rápido, a mulher esmagou sua clavícula com os joelhos, fazendo com que ele esboçasse uma careta horrível de dor intensa. Não houve tempo para que os gritos que se formavam ressoassem. Usando as próprias mãos, ela espalhou as engrenagens do homem pelo chão da cozinha.

            - Venham rápido crianças, enquanto está quente. 

            E as crianças vieram e lamberam até os ossos.

           

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