ESCRAVO REPRODUTOR

            Certa manhã os brancos tiraram Kutsiva do meio dos escravos na plantação. A família do escravo entrou em pânico, pensando na desgraça que poderia ter caído sobre o rapaz. Pamuviri, sua irmã, caiu exasperada no meio do cafezal, enquanto seu pai balançava a cabeça e dava o filho como morto. A mãe de Kutsiva sentou-se no chão e esperou que os homens viessem para lhe espancar até a morte. E eles vieram. 

             O escravo desceu do cavalo nos fundos de torra. O fazendeiro bateu com força sua bengala dourada entre suas pernas. Kutsiva se curvou de dor e perdeu o ar, enquanto os brancos davam gargalhadas.  

              Todos desceram até o portão. Lá debaixo, em um ambiente escuro e muito quente, por conta das fornalhas acima, estava uma mulher nua, presa a uma estrutura de madeira que não se assemelhava a nada que Kutsiva já havia visto. Tudo o que se podia ver pela luz da lamparina na parede eram suas nádegas e pernas escuras. 

            "Não é como uma pessoa deveria ficar", o negro pensou.

            O cheiro azedo do lugar era insuportável. Como se um animal grande como uma vaca tivesse morrido e sido enterrado ali, e os gases da carcaça estivessem se soltado e se acumulando no ambiente.

            - Vamos, preto, é um presente! - disse um dos homens.

                Kutsiva, que era jovem e nunca havia visto uma mulher nua,  não podia negar que sentiu certo desejo crescer dentro de si, apesar das circunstâncias. E talvez seu sentimento fosse justificável, devido a imaturidade, embora o que fez a seguir não fosse.

            Aproximando-se e tocando na mulher, Kutsiva pode ouvir o som rouco e abafado que ela emitiu do outro lado. Percebeu que estava amordaçada. Chegou a conclusão de que tudo aquilo deveria ser apenas para os brancos se divertirem.

            - Ele não vai conseguir. 

            - Aquela pancada no saco dele foi muito forte, senhor.

            - Vai logo, preto, enfia nela de uma vez. Não vou ficar te vendo olhar essa bunda preta.

            Ele fez o que queriam.

            Os homens analisaram a cena toda. A fúria atroz do negro os impressionou, e houve até mesmo sentimento de piedade pela mulher no meio daquela brutalidade. Seus pequenos pés se erguendo do chão e se contraindo, suas pernas musculosas tremendo por causa de dor e terror.

             - Eu não posso fazer nada. Faço apenas o que me mandam - Kutsiva repetiu para a velha Ucansi, nas noites em que a bebida não dava jeito na culpa. Havia sido transferido para outra parte da fazenda, um lugar mais calmo, com quaresmeiras e lofanteras floridas, onde não precisava trabalhar como antes. 

            "Mas há um limite para tudo", Kutsiva podia ler nos olhos de Ucansi. 

                Algumas pessoas tinham medo de Ucansi. Os brancos diziam que ela era uma feiticeira que tinha pacto com o diabo, havia enfeitiçado o patrão e agora mandava na fazenda. Kutsiva nunca levou as histórias a sério. Sobre a velha ter liberdade para fazer rituais em segredo, sacrificar animais e escravos. Ao invés disso, tinha pena da mulher, que era do tamanho de uma criança. 

             Kutsiva não tinha mais coragem de andar pela plantação depois que descobriu o sentido do que fazia. Mesmo sendo protegido pelos homens da fazenda. Tinha medo de encontrar mulheres grávidas carregando seus rebentos no sol. Medo que todos soubessem que era ele que as violava e que as obrigava a gerar crianças para servirem de escravos na fazenda. Além disso, tinha vergonha de voltar e não encontrar sua família.

            Em um dia bonito do verão, Kutsiva vagava meio adormecido pela fazenda, montado em um pangaré que ganhou. Estava embriagado, com sua cabaça já vazia pendurada no pescoço, quando foi desperto por um puxão forte nas rédeas do animal.

            - Cuidado! - disse o fazendeiro. 

             O homem mantinha no olhar o brilho vil que os escravos como Kutsiva haviam aprendido que era característico dos brancos. Sua bengala estava erguida próxima a orelha do cavalo, e pela primeira vez Kutsiva pode reparar nos ornamentos do cabo de prata. Eram contornos de rosas com troncos espinhosos. 

            - Por que você não vem dar um passeio? Não, não precisa descer do seu cavalinho. Eu levo você - disse o fazendeiro.

          Juntos, os dois deram a volta no casarão e encontraram as filhas do fazendeiro sentadas e lendo na varanda, sendo abanadas por duas escravas da casa. O homem acenou para as duas enquanto puxava o cavalo. As mulheres na varanda riram dos dois enquanto cruzavam por elas, sentadas em suas grandes poltronas, enquanto as negras escravas encaravam o negro em cima do cavalo.

           Vendo o olhar das negras, um sentimento de pura fatalidade tomou conta de Kutsiva, fazendo com que suspirasse. Fazia um bom tempo que não o chamavam para o porão, e da última vez... Pensou que não precisavam mais dele e que seria enforcado assim que o patrão encontrasse a árvore certa para isso. 

            O escravo percebeu até onde iriam quando o fazendeiro fez a curva nos balcões de curtição e seguiu reto pela estrada, rumo a enorme porteira com o sobrenome da família e a imagem de dois gaviões entrelaçados. Eles estavam indo até a plantação, onde os negros trabalhavam sem parar desde que o sol havia nascido. Onde a família de Kutsiva continuava em sua sina de sofrimento. 

            Em meio ao desespero de que todos o vissem sendo puxado pelo homem, como o negro traidor que ele se considerava, Kutsiva tentou pular do seu cavalo em movimento. Não sabia ao certo o que pretendia fazer, queria apenas evitar aquilo de alguma maneira.

            - O que pensa que está fazendo, negro? Não se meta a descer daí! - gritou o homem, falando agora do jeito que Kutsiva estava acostumado que se dirigissem a ele. - Não está vendo o que estou fazendo por você? - disse ele, abrindo um sorriso.

            Kutsiva abaixou sua cabeça e seguiu em cima do cavalo, suando frio, mesmo em meio a tanto calor. Sentia que seus testículos haviam desaparecido do corpo, que era um homem oco cheio de ar, apenas com um coração que batia descontrolado na garganta. Pensou que aquela era a pior coisa que o demônio branco poderia fazer a ele. Preferia ser pendurado pelos tornozelos e esfolado vivo com uma faca cega ao invés daquilo.

            Aos poucos, o restante do povo escravizado da fazenda foi surgindo. Kutsiva e o fazendeiro passavam devagar por eles. O negro de cabeça baixa em cima do pangaré e o homem cumprimentando cada um dos escravos. Kutsiva não tinha nenhuma coragem para erguer o olhar, apenas ouvia os passos e o som das ferramentas de trabalho, que jamais paravam durante o dia.

            Foi longa e sofrida a cavalgada, e cada vez mais o negro se encolhia em sua montaria. Sem forças, sentia que estava sendo destroçado a cada segundo que continuavam com aquilo. Quando percebeu que finalmente estavam dando a volta, que retornariam para a fazenda, sentiu alívio. Planejou correr para o barril de aguardente e se embebedar o mais rápido possível. Queria não parar mais de beber depois daquilo, até finalmente morrer.

            - Olhe, Príapo! Aquela não é sua família? - perguntou o fazendeiro, parando abruptamente com o cavalo. - Claro que sim! Erga a cabeça e cumprimente seus pais.

            O escravo apertou os olhos, tentando afundar seu queixo no meio do peito desnudo. Não podia deixar de maneira alguma que o vissem daquele jeito, por mais que no fundo quisesse ver sua família mais uma vez. Teria descido do cavalo e fugido se fosse possível, mas seu instinto de autopreservação o impediu naquele momento.

            - Vamos, homem, abra os olhos e cumprimente. Não sabe que sentem saudades de você? 

            Nunca um branco havia se referido a ele como sendo um homem. Esse simples fato causou tamanha surpresa que Kutsiva abriu seus olhos. Mais do que isso, ele os esbugalhou para a plantação de café.

            Para sua tristeza, sua família estava mesmo lá, bem diante deles. Sua mãe, mais envelhecida do que nunca, tinha uma longa cicatriz do lado esquerdo do rosto e estava ainda mais magra do Kutsiva se lembrava. Seu pai parecia um animal curvado com a inchada, com os olhos perdidos nas profundezas do crânio e uma expressão de dor. Nenhum deles ousava levantar os olhos diante do fazendeiro.  

            Pouco mais atrás do casal estava o que realmente o escravo havia sido trazido para ver. Sua irmã Pamuviri tinha um grande cesto cheio de frutas de café sobre a cabeça. A moça, que era alguns anos mais jovem que o irmão, estava com clara dificuldade em acompanhar o trote do cavalo e andava com muito esforço atrás do homem montado a sua frente. Em condições normais, Pamuviri não teria problemas em fazer o trabalho, mas agora era uma mulher grávida com uma enorme barriga.

            Para Kustsiva, a barriga descoberta de Pamuviri refletiu a luz do sol no campo mais do que um espelho. Nela ele viu a imagem dos seus pecados contra todo seu povo e aquilo que considerava puro e querido no lugar de onde veio. Em crescente agonia, Kutsiva ergueu as mãos a cabeça. 

             Não suportando mais, o escravo saltou de cima do pangaré, sem pensar no risco que corria ao dar as costas ao seu dono. Ele correu, esperando ser alvejado a qualquer momento ou parado por um dos cavaleiros. Nada aconteceu. Ele correu o máximo que pode, pensando em fugir, sem medo de ser morto ou espancado até morrer. Parecia que a liberdade era cada vez mais possível, a medida que se distanciava. Em um momento de fúria, parou a margem do rio, com os pés descalços afundados no lodo cinzento, e urrou feito um animal, assustando os pássaros nas árvores e outros animais, indiferentes aos dilemas humanos

            Kutsiva pensou em quanto tempo mais teria aguentado fazer aquilo. Não queria admitir, mesmo naquele momento, que seria uma vida toda de estupros naquele porão. E enquanto ele fazia aquilo com a própria irmã, os brancos riram e se divertiram, sabendo da verdade o tempo todo, pensou.

            Kutsiva esperou na margem do rio e rezou para Nanã Buruku, "Senhora da Morte", até a noite chegar. Decidiu que o que precisava mesmo era matar pelo menos um dos brancos, da maneira mais violenta que fosse possível. Matar e depois morrer feliz, mesmo que o jogassem no fogo.

            Por isso ele espreitou pela noite feito uma cascavel, e esperou nas sombras pronto para assassinar com os dentes. Atento a qualquer movimentação, reconheceu facilmente que era o próprio fazendeiro vindo na sua direção, movendo sua bengala contra o sereno da noite. Era tanta sorte que mal podia acreditar. 

            Kutsiva continuava sendo um homem forte. Muito mais forte do que o fazendeiro, com certeza. De baixa estatura, o homem tinha uma enorme barriga  pálida, que às vezes espiava por entre os botões da camisas. Era baixo e de olhos pequenos, que muito pouco de braçal ou nada fez na vida para ter algum músculo mais desenvolvido.

            Surgindo de repente na frente do homem, como uma assombração no ponto mais escuro entre a casa de torra e o armazém, Kutsiva causou a sensação que gostaria no homem, percebendo todo o pânico no seu rosto ao vê-lo tomado de ódio.

            Antes que pudesse gritar, o fazendeiro teve as mãos de seu escravo ao redor do pescoço e as sentiu apertar como um torno mecânico bem lubrificado. O sufocamento foi imediato, embora o negro quisesse prolongar seu sofrimento ao máximo possível. 

            Kutsiva derrubou o homem no chão, para que ninguém os visse. Em meio a grama molhada e a sujeira, eles rolaram para debaixo do pequeno prolongamento do edifício, nos fundos da casa, onde ficava o quarto da velha Ucansi. Os dois ficaram invisíveis. Kutsiva tinha a noite toda para aproveitar o momento. 

            - Você vai morrer por ser um homem tão mau! - sussurrou Kutsiva no ouvido do homem, em sua língua nativa.

            Em meio a todo o seu deleite naquele momento, o escravo sentiu algo ferroar seu abdômen. Foi uma pontada seguida por uma sensação fria, que logo se tornou ardente. Sentia algo vivo dançando em suas tripas. Olhou para baixo e não pode acreditar no que o homem havia feito. 

            Nesse tempo todo havia uma lâmina escondida na bengala, que nesse momento o homem usava desajeitadamente em Kutsiva. Rapidamente o escravo começou a perder as forças. Não podia acreditar que aquele homem se safaria. Sentiu algo denso lhe subir a garganta e um jato de sangue escuro jorrou de sua boca no rosto do fazendeiro. 

            Usando o que restava de sua energia, toda musculatura e a resistência que havia trazido consigo para aquele lugar, Kutsiva espremeu o pescoço do homem. Tinha certeza de que conseguiria quebrá-lo, que seria a última coisa que faria na vida. Pela segunda vez sentiu a lâmina perfurar seu corpo, e depois dessa, mais duas vezes ela o fez. Sentiu que por mais que apertasse e afundasse seus dedos no pescoço do fazendeiro, não conseguiria matá-lo. Sentia-se um menino que nunca matou uma galinha, sacudindo o animal para os lados, sem saber como quebrar seu pescoço. Não tinha mais a destreza e a força necessárias. 

            Em meio ao desespero, o escravo teve uma ideia. Soltou uma das mãos e lambuzou ainda mais de sangue o rosto e os cabelos do homem, espalhando nele toda a sujeita que saia do seu corpo. Era profundo o nojo que o homem demonstrava, tendo o sangue e as fezes do escravo espalhados pelo rosto. 

             Aos poucos a mão que apertava o pescoço foram ficando cada vez mais fracas, até que escorregaram para o chão e a cabeça de Kutsiva tombar sobre o homem.

            Rapidamente o fazendeiro puxou todo o ar que seus pulmões conseguiam. Por sua garganta estar machucada pelo estrangulamento, não conseguiu gritar por ajuda. Empurrou Kutsiva para o lado e se arrastou para fora dali. Um grito maníaco e estridente, que só uma pessoa muda poderia emitir, soou como um alarme pelo pátio, quando a velha Ucansi no prédio acima viu sua figura negra andando como monstro do lado de fora da janela do quarto. 

            O homem estava irreconhecível. Foi a passos trôpegos em busca da ajuda, urrando e sacudindo as mãos rechonchudas o máximo que pode quando viu seu empregado. Àquela distância não foi o suficiente para que o segurança armado com uma espingarda entendesse. Tudo o que ele viu foi uma figura negra andando no meio da noite e a chance de atirar para matar.

            Quase todas as espingardas eram carregadas com chumbo comum, mas esse segurança fazia questão de que a sua arma fosse carregada com chumbo grosso especial para caça de animais pesados.

            Foi um disparo certeiro na lateral do corpo do fazendeiro. Ele rodopiou na ponta dos pés, espalhando sangue, vísceras e fragmentos de ossos pela grama, antes de cair morto de cara em fezes de cavalo.

            Quando a velha Ucansi encontrou Kutsiva naquela noite, ele já estava morto. Quis acreditar que o som do disparo havia sido a última coisa que o rapaz havia escutado antes de morrer. 

            Tocando nos ferimentos com sua mão atrofiada, Ucansi desenhou o que parecia um ponto de interrogação na testa do cadáver, e entoando uma antiga canção africana, o trouxe volta a vida. 

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