TUTTI-FRUTTI


          Peitos, bundas e sacos caídos; pelos pubianos esbranquiçados, velhos pênis cansados e vaginas murchas, frouxas e secas. Para Lilian era um show de horrores. "Poderia matar todos eles com uma pedra do rio, correndo em círculos ao redor deles e golpeando suas cabeças", ela pensou.

           Mascando chiclete de tutti-frutti, Lilian os observava com um monóculo tático, os acampados na beira do rio. A pouco mais de quinhentos metros de distância, um grupo de mais ou menos cinquenta casais acima dos cinquenta participava do "Movimento Corpo Livre". Velhos nus fazendo ornitologia. Ela não poderia acreditar se não estivesse vendo com os próprios olhos. 

            Ela respirou fundo o ar doce da floresta e coloca a tampa na lente do monóculo. Pegou a sacola de papel no banco traseiro do carro, que tinha meia dúzia de granadas de mão M67 dentro. As granadas custaram caro, mas Lilian pensou que uma diretora executiva podia se dar ao luxo. 

            "Quando um velho pelado explode no meio da floresta, sem que ninguém esteja lá para ouvir, ainda assim faz barulho?" - Lilian riu com esse pensamento. 

            Algo disse a ela que quilo era tudo o que precisa. Não yoga, não livros, não músicas, nem drogas recreativas ou os remédios que a psiquiatra receitou. Se não der um jeito nisso, sentia que poderia acabar explodindo. 

            Voltando a espiar no monóculo, ela vê um dos velhos entrar na água. O primeiro a se arriscar. Para ela o homem lembra o Boris Johnson, com cabelos desgrenhados cor de urina. "Como atrapalha quando você lembra uma pessoa que é odiada", pensou ela. Decidiu que aquele seria o primeiro a explodir.

            Ela tira os sapatos e mergulhou os pés na água do rio. Sentiu as pedrinhas no fundo  a massagearem e admirou seu esmalte vermelho em destaque debaixo da água. Seu plano era dar a volta pela margem, surgindo de maneira inusitada, pegando todos de surpresa. 

            O som repentino das rodas de um veículo a surpreendeu. Instintivamente ela tirou uma das granadas do saco, antes de se virar para ver quem era. Sentiu algo estranho, bem difícil de definir, quando viu quem havia chegado. Talvez fosse um tipo de alívio misturado com uma sensação de pânico. Por um breve instante se perguntou se era mesmo aquilo o que queria. Não fazia ideia de como o marido descobrira onde ela estava. Talvez tenha encontrado o folheto na agenda do escritório. Talvez ele a conheça mesmo tão bem quando gosta sempre de lembrar.

            - Lilian? - é a primeira coisa que ele diz, como se não a reconhecesse parada dentro da água. "Seu conhecimento profundo deve ser mais no ponto de vista mental do que físico", ela pensou. - O que você está fazendo dentro desse rio? - ele pergunta, depois de descer do carro.

            A mulher esconde ao lado do corpo a granada que segurava e abraçada a sacola. Percebe que o marido está com um dos bonés da coleção enfiados na cabeça grande, um dos que ela mais odeia.

            - Meu deus, Nicolas, será que não posso ficar um minuto a sós? Será que não posso espairecer e ouvir meus pensamentos, apenas eles, em vez da sua voz sempre que saio do serviço? 

            O marido se aproximou, acostumado com os rompantes de raiva. Pareceu cansado e tinha um olhar abatido. Talvez tivesse chorado no caminho, pensando que a mulher havia se matado. 

            - Você não voltou para casa, Lili. Eu sei que estão te cobrando muito depois da promoção. Estou muito preocupado com você. Acho que não deveria ter parado de tomar os remédios...

            Lilian ficou vermelha e arregalou seus grandes olhos azuis. Odiou profundamente o marido por fazê-la se sentir como uma criança que foi pega escondendo cadáveres de animais nos fundos da casa.

            - Desculpe. Eu conto os comprimidos desde a última vez - disse ele.

            Lilian suspirou, tentando se acalmar. Não podia demonstrar que estava perdendo o controle das coisas, isso seria uma prova de que precisava mesmo dos remédios.

            - Os Pássaros, de Frank Baker, é o melhor livro que eu já li na vida - é a única coisa que ela consegue dizer ao marido.

           Lilian sabe que o marido odeia ler. Sua aversão por leitura é tão grande que pensa que mesmo a amando tanto, não conseguiria terminar um livro com cem páginas de jeito nenhum, mesmo que custasse a vida dos dois.

            - Quem sabe voltamos para casa para assistir o filme do livro? - disse ele, reparando na sacola que a esposa segura.

            - Não é a mesma coisa - diz Lilian. - E o filme é baseado em um conto de um cara francês.

            - Não importa - disse o marido. Na sua opinião mais sincera, quanto mais balas perdidas em um filme, melhor. - Vamos para casa, Lili, eu esqueci de colocar ração para os gatos. 

            Um velho nu surge assoviando na curva do rio. É a coisa mais inusitada que Nicolas já viu na vida. Mesmo assim, sua preocupação com a esposa é maior e mal se atenta ao fato do homem estar totalmente sem roupas. A correnteza parece ficar mais forte. Nicolas olha mais uma vez de esguelha para o velho e pensa que ele lembra muito o Boris Johnson.

            - Não, eu não vou voltar agora. Só depois, meu amor - disse a esposa. Algo reluz no seu olhar. O marido se pergunta o que é. Não era felicidade ou tristeza, muito menos lágrimas que estavam brotando. Era algo que ele havia visto uma vez, há muito tempo, nos olhos da mãe. Insanidade. Percebeu ter ligado para a emergência assim que saiu no carro. "Como sou tonto!", pensou ele.

            - Não se assustem comigo, é perfeitamente natural. Ouvi umas vozes lá de trás enquanto fazia minha caminhada. Verdade, não sou maluco. Faço parte de um grupo. Somos o que chamam de "nudistas".

            O casal segue calado sem entender a razão para que o velho se aproxime cada vez mais e continue falando. Erguendo uma das mãos, Nicolas faz um gesto para que a esposa saia da água e venha com ele.

            - Parece besteira, eu sei - diz o velho - Na verdade, tem coisas que só você mesmo pode julgar se é besteira ou não.

           Há um baque quando a sacola de papelão cai na água. Ela começa a ser levada pela correnteza, girando e afundando aos poucos, querendo ir para o  meio do rio. Lá se vão as M67.

            - Espera um momento, moça! Não se joga lixo no rio! - diz o velho, com seu sotaque estrangeiro. -Você é bem grande para saber disso!

            - Será que o senhor não pode calar a boca e meter o pé daqui? - diz Nicolas, se arrependendo imediatamente. Ele conhece bem os velhos, já trabalhou em uma casa de repouso. Considerava da maioria deles pior do que a das crianças.

            Pela primeira vez o homem ergue os olhos. São olhos pequenos, escuros e próximos um do outro. Nicolas pensa que ele vai começar a espraguejar, mas ao invés disso abre um sorriso e começa a gargalhar de maneira gorgolejante. 

            Quando Lilian joga o pequeno objeto no ar para Nicolas, em meio a crise de risadas, ele torce para não ser sua aliança. Não era. Ele reconhece a coisinha de dezenas de filmes que assistiu na vida, mas não consegue acreditar que seja mesmo aquilo. Um pino de granada. 

            Sem saber o que esperar ou fazer a seguir, Nicolas continuu encarando a esposa, que por sua vez parecia encarar o pênis do velho. Ficou pensando onde a mulher poderia ter arranjado uma granada. Não tinha certeza se aquilo era mesmo possível. Queria muito apenas voltar para casa para assistir o jogo do Al Shabab na televisão e beber cerveja até esquecer todo aquele drama.

            - Não faça nada maluco, Lilian! Por favor! - disse o marido. - Pense nos nossos gatos, meu amor!

            Em um impulso rápido, a mulher lança o pequeno objeto cor de oliva no ar. Sua alavanca precursora cai no trajeto. A granada faz um pequeno arco e afunda ao lado do velho, sem fazer nenhum som ao atingir a água. Mulheres nunca foram boas em arremessar coisas, Nicolas lembrou, mas até que aquele arremesso foi dos bons, pensou ele.

            Vendo a coisa cair tão próxima, o velho se acocorou como faz uma mulher para fazer xixi no mato, mergulhando seu saco rosado parecido com um chiclete mastigado, sem demonstrar incomodo pela água gelada. Vendo aquilo, Lilian cuspiu o chiclete que tinha em sua boca. O velho enfiou a mão direita na água e retirou a granada molhada. Ele a ergueu bem próximo dos olhos e a examinou com cuidado entre a ponta dos seus dedos gordos de unhas compridas.

                - Se abaixe, Lilian, se abaixe! - Nicolas gritou. Sabia pelos filmes que a explosão poderia facilmente os atingir àquela distância. 

                Rapidamente ele pulou na água, apertando os dentes e tampando os ouvidos com os dedos, com uma criança faz. A explosão foi ensurdecedora e poderosa. Sentiu um golpe forte nas costas e na bunda, como um chute que faz seu cérebro sacudir. Imaginou o que uma coisa daquelas pode ter feito ao pobre velho. Se perguntou porque seguia fazendo aquilo consigo mesmo, ano após ano. Havia sido fisgado por uma mulher capaz de cortar os pulsos com os dentes.

            Ainda que se esforçasse, não era possível voltar atrás na evolução. Nicolas teve que voltar a superfície depois de alguns segundos. Algo pesado pareceu cair do céu bem no momento em que emergiu da água. Era um braço, ele pode reconhecer bem.

          A água estava mexida e havia cheiro de enxofre e melado no ar. Uma névoa fina está espalhada pelo ambiente, e no meio dela estava o velho com um cigarro aceso na boca. Diante de tudo aquilo, dos pedaços escuros, do tecidos arrebentado e do sangue sendo levado pela água, Nicolas se perguntou de onde ele havia tirado o cigarro, e como fez para acender?!

                Soltando fumaça pelo nariz, o velho se aproximou daquela maneira desajeitada que pessoas andam quando estão na água até os joelhos. O rapaz no fundo queria se afastar, mas era impossível. Não conseguia evitar, estava praticamente travado. 

                O velho tinha um aranhão profundo no pescoço, causado por um fragmento do involucro da granada. O sangue escorria pelo seu peito. Bem perto de Nicolas, ele se virou e mostrou, com aparente orgulho, uma tatuagem desbotada no ombro esquerdo. Era o desenho de brasão azul com uma caveira e um raio amarelo a transpassando. Embaixo havia a sigla JCVE. Nicolas nunca descobriu o que aquilo queria dizer.

                - Não chora, rapaz... - disse o velho, com sincero compadecimento ao ver suas lágrimas - Aquela mulher era uma cadela esquizofrênica do mau. 

                Nicolas juntou o braço no rio. Ainda estava com a manga da camisa nele. Naquela circunstância era muito estranho para ele ver o símbolo do infinito tatuado no pulso da esposa. A aliança de ouro continua no dedo, firme como quem nunca a tirou em quase cinco anos de casamento.


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